A 25 de Abril de 1974, o povo saiu à rua, fundindo-se com os militares que, com as suas armas caladas e o fervor na palavra, devolviam ao país a liberdade, há tantos anos agrilhoada na ditadura. Os dias que lhe seguiram foram únicos na sua expressão mais solidária, mais fraterna, mais igual entre todos os cidadãos. Com mais ou menos sobressaltos, Abril brindou-nos, cerca de dois anos depois, com uma Constituição da República Portuguesa de direito democrático que hoje atribui os mesmos direitos e deveres, independentemente da ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas e religiosas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual. Com estrondo, a decrépita e anquilosada Constituição do Estado Novo caía no lodo em que se erguera. A pessoa humana alcançara o direito à igualdade, à liberdade, à democracia. Nomeadamente, a mulher conquistou a sua carta de alforria, enterrando o seu papel de menoridade na família, na sociedade civil e política, na vida económica e na cidadania. A Constituição de 1933 ditava expressamente que o Estado se baseava na igualdade dos cidadãos perante a lei, que envolvia vários direitos e proibições, salvas, quanto à mulher, as diferenças resultantes da sua natureza e do bem da família, e quanto aos encargos e vantagens do cidadão, as impostas pela diversidade das circunstâncias ou pela natureza das coisas. E estas determinavam, segundo o pensamento ultraconservador dos governantes, a subordinação da mulher ao marido, em casa, no emprego, nas viagens, na economia. Por isso contava o provérbio que lá em casa manda ela, mas nela mando eu. A mulher era orientada para ficar em casa, a tomar conta do lar e dos filhos, o homem para mandar, orientar, decidir e determinar o futuro daqueles e da sua mulher. Imperava a trilogia - Deus, pátria, família - mas o seu conteúdo era o imposto pelo Estado autoritário em conluio com uma Igreja que nada tem a ver com a responsável, caridosa e humanista doutrina do Papa Francisco e seus seguidores. A pátria enviava os seus filhos para a morte no Ultramar, o soldadinho não volta do outro lado do mar, a juventude contaminada pela dor e a ansiedade pós--traumática de uma guerra que não queria era afastada do seu futuro, do casamento, do emprego, da família. A moral imposta não era a da ética republicana, mas a perversa tradução das públicas virtudes/vícios privados praticados pelos protegidos do regime e por este empenhadamente abafados, como o demonstrou o caso Ballet Rose. Hoje vive-se em harmonia com o pensamento livre de cada um. A família é aquela que escolhemos, a vida em sociedade é partilhada e a liberdade de expressão e de imprensa são realidades vividas e sentidas. Não se impõe nem se proíbe a escolha de cada um na sua vida privada. Apenas impera, sem excepção, o Direito, a Equidade e a Justiça. Esta é a linha vermelha traçada pela nossa democracia, não podemos ultrapassá-la nem deixar que a ultrapassem.

*A autora escreve segundo a antiga ortografia

QOSHE - A Constituição de Abril - Cândida Almeida
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A Constituição de Abril

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14.04.2024

A 25 de Abril de 1974, o povo saiu à rua, fundindo-se com os militares que, com as suas armas caladas e o fervor na palavra, devolviam ao país a liberdade, há tantos anos agrilhoada na ditadura. Os dias que lhe seguiram foram únicos na sua expressão mais solidária, mais fraterna, mais igual entre todos os cidadãos. Com mais ou menos sobressaltos, Abril brindou-nos, cerca de dois anos depois, com uma Constituição da República Portuguesa de direito democrático que hoje atribui os mesmos direitos e deveres, independentemente da ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas e religiosas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual. Com estrondo, a decrépita e anquilosada........

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