Ilustração

Luiz Oswaldo Carneiro Rodrigues

Durante uma onda de calor no início de 1998, quando o Brasil passava por um fenômeno El Niño - menos intenso do que o atual, eu soube pelos jornais que doze bebês e cinquenta e quatro adultos haviam morrido de “infecção hospitalar”, os recém nascidos na maternidade Alexander Fleming e os demais no Hospital Estadual Carlos Chagas, ambos na Zona Norte do Rio de Janeiro. Naquela época, minha linha de pesquisa na universidade era sobre respostas do organismo ao calor e então suspeitei que aquelas mortes pudessem estar relacionadas com a onda de calor que vivíamos.
Entrei em contato com as equipes médicas daqueles hospitais e fui convidado para ir ao Rio e, quem sabe, contribuir de alguma maneira para o esclarecimento do excesso de mortes que estavam observando.

No dia seguinte (7/2/98), duas alunas de pós-graduação - Maura Regina Silva da Páscoa Vilela, Giane Amorim Ribeiro - e eu medimos as condições térmicas ambientais nas instalações hospitalares onde ocorreram as mortes. Verificamos que o ambiente era de alto risco para hipertermia e a maioria dos bebês e dos adultos falecidos poderia ter morrido em consequência de choque hipertérmico, uma condição na qual o organismo não consegue dissipar o calor e evolui para uma situação parecida com a septicemia.
Nossas conclusões foram enviadas para as autoridades de saúde e publicadas em alguns jornais e na Revista do Conselho Federal de Medicina . Algumas semanas depois, os exames laboratoriais confirmaram que as mortes não haviam sido causadas por infecção hospitalar. O programa Fantástico da TV Globo chegou a fazer uma breve reportagem no dia 8 de março, atribuindo - equivocadamente - aquelas mortes à “desidratação”. Em pouco tempo o assunto esfriou e as vítimas da onda de calor foram esquecidas, pois a crise climática parecia distante e - para os negacionistas - era ficção científica.
Quem eram as pessoas mortas?
Os bebês na maternidade Alexander Fleming (mantidos na incubadora quente, APESAR do calor no ambiente) e as pessoas que morreram no hospital público eram, em sua maioria: mulheres, pobres, pardas ou pretas, idosas e idosos, moradoras e moradores em barracos precários da periferia da Zona Norte do Rio, que tive a oportunidade de visitar alguns dias depois. Muitas das casas eram de telhado metálico, sem ventilação e extremamente quentes, o que explica porque cerca de 60% das vítimas chegaram mortas ao pronto atendimento.
O aumento de óbitos durante ondas de calor têm sido relatados em diversas pesquisas científicas, inclusive durante uma nova onda de calor no mesmo Rio de Janeiro, em 2010, pela climatologista Renata Libonati.
Vinte e cinco anos depois, o capitalismo devastador não reduziu o desmatamento e nem a emissão de gases de efeito estufa, então a crise climática se tornou emergência em saúde pública mundial e a população brasileira pode estar entre as mais vulneráveis do planeta.
O Brasil está localizado numa região com 17 tipos de climas, do subtropical, no extremo sul do país, até o tropical chuvoso na região amazônica, passando pelos climas do cerrado central e do semiárido nordestino. As populações brasileiras estão, portanto, submetidas a combinações variadas de temperatura e umidade relativa do ar, como, por exemplo, desde o frio seco de Maringá (PR), o frio úmido de São Joaquim (SC), o calor seco de Cabrobó (CE) até o calor úmido de Manaus (AM). Entre estes extremos citados, todas as combinações de temperatura e umidade relativa são possíveis em diferentes épocas do ano e em cada uma das microrregiões geo-climáticas os efeitos da crise climática serão imprevisíveis.
Neste cenário, seremos capazes de proteger a saúde das pessoas mais vulneráveis? Como será trabalhar, realizar exercícios físicos ou viver nesses ambientes de risco?
Em repouso, e especialmente durante atividades físicas, nosso corpo produz calor, que deve ser dissipado para o ambiente. A espécie humana, originada pela seleção natural em ambiente quente e seco, é bastante adaptada para viver nesse tipo de ambiente, por causa da nossa capacidade de retirar calor do corpo por meio da evaporação do suor produzido. Por isso, nossa sobrevivência diminui quando a remoção de calor está prejudicada pela pouca evaporação do suor, o que acontece nos ambientes quentes e úmidos ou com o uso de roupas inadequadas.
Quando o calor se acumula no organismo, os termômetros clínicos indicam aumento da temperatura corporal, a chamada hipertermia (também chamada em português de insolação, choque pelo calor, intermação), e o aumento da temperatura cerebral pode resultar em danos para a saúde e causar a morte.
O ambiente quente dificulta a remoção do calor e o risco de hipertermia aumenta quando há desidratação, algumas doenças e uso de certos medicamentos. Para evitarmos a hipertermia, precisamos, portanto, conhecer os fatores de risco: as condições do ambiente em termos de temperatura e umidade relativa do ar, saúde da pessoa, seu estado de hidratação e a quantidade de calor metabólico que será produzido e por quanto tempo (seja em repouso ou exercício), além das roupas utilizadas.
Ignorar o ambiente e as condições básicas de saúde pode resultar em danos permanentes.
Uma forma de entender os riscos de hipertermia é conhecendo um caso real. Um trabalhador, que vamos chamar de João, de 32 anos, pai de duas filhas, apresentou cansaço progressivo, sudorese intensa, dor de cabeça e náusea após algumas horas de trabalho numa siderúrgica em Minas Gerais, quando realizava manutenção em chaminés. No ambulatório de atendimento médico da empresa informaram-lhe que estava com febre (39,7oC) que teria sido causada por gripe e ressaca (João havia bebido duas cervejas na véspera). Recebeu Dipirona 500 mg via oral e foi enviado de volta ao trabalho. João concluiu seu turno cometendo alguns erros operacionais e chegou em casa cambaleante, necessitando ser amparado. Permaneceu deitado, ofegante, com as extremidades quentes e progressivamente confuso. Levado ao pronto socorro de sua cidade, chegou inconsciente e com a pressão baixa. Foi diagnosticado com “desidratação”, recebeu antitérmicos e hidratação venosa. Evoluiu em pouco tempo para estado de choque (pressão arterial zero) e nas horas seguintes, recebeu oxigênio e antibiótico, pois o diagnóstico médico tinha mudado para “choque séptico” (estado de choque causado por infecção generalizada). Doze horas depois de ser atendido no ambulatório da siderúrgica, João apresentou parada cardíaca e faleceu. Sua morte não foi considerada acidente de trabalho e sua família não recebeu qualquer tipo de indenização.
O caso de João constitui uma situação típica de hipertermia que evoluiu para estado de choque e morte, porque foi tragicamente ignorada pelos profissionais da saúde que o atenderam. Esta situação acontece quando o calor produzido pela atividade metabólica do corpo, - especialmente o calor derivado da atividade muscular (esforço físico para limpar as chaminés), - soma-se ao calor proveniente do meio ambiente (calor dentro da chaminé), elevando a temperatura interna acima dos limites compatíveis com a integridade funcional das células, principalmente do sistema nervoso central.
Devido ao risco aumentado de mortes provocadas pelo trabalho em ambientes quentes, precisamos ser capazes de identificar as as principais manifestações de hipertermia (que João apresentou e não foram identificadas corretamente).
A primeira distinção a ser feita é entre febre e hipertermia (veja mais detalhes aqui ).
Na febre o organismo acumula calor por decisão dos centros nervosos termorregulatórios (por meio da vasoconstrição periférica, da produção de tremores e da supressão do suor).
Ao contrário, na hipertermia o organismo acumula calor por incapacidade de dissipá-lo para o ambiente, o que tenta realizar por meio da vasodilatação cutânea e da grande produção de suor, o qual, somente retira calor do organismo se o suor puder evaporar).
Enquanto na febre em ascensão a temperatura interna está aumentada e a pele permanece pálida e fria, na hipertermia a temperatura interna está aumentada mas as extremidades se apresentam com a pele quente. No entanto, na prática dos profissionais de saúde, infelizmente, há grande confusão entre febre e hipertermia, o que pode ser fatal, como no caso de João.
Outro aspecto importante que foi negligenciado no primeiro atendimento, ainda na siderúrgica foi a história clínica evidente: João era um homem jovem, saudável e assintomático até poucas horas antes, enquanto trabalhava realizando esforço físico, usando roupas de proteção pesadas e impermeáveis à evaporação do suor, sob condições de calor. A probabilidade de hipertermia nestas condições deve ser considerada dentro do diagnóstico diferencial com febre.
No Quadro 1 apresento os diferentes sinais e sintomas que aparecem durante exposição ao calor de acordo com os diferentes níveis de hipertermia, desde a fisiológica (fadiga) até a exaustão ou mesmo a morte por choque hipertérmico.


Nível de gravidadeManifestações associadas ao aumento da temperatura interna
Fadiga
(Temperatura axilar geralmente menor do que 39 oC)Desejo de interromper a atividade - cansaço Desatenção Perda de eficiência Aumento dos erros operacionais

Exaustão
(Temperatura axilar geralmente maior do que 39 oC)Síncope (hipotensão - queda de pressão arterial - transitória) Taquicardia (aumento dos batimentos cardíacos) Cefaleia (dor de cabeça) Náusea (enjoo, vômitos) Perda de força muscular Ataxia (falta de coordenação motora) Câimbras musculares Hiperventilação (respiração acelerada) Disfunção sudorípara (incapacidade de suar)

Choque hipertérmico
(Se não for considerada a história clínica o quadro é semelhante ao choque septicêmico)Hipotensão (queda na pressão arterial) duradoura até estado de insuficiência circulatória aguda
Disfunção neurológica evoluindo para coma
Oligúria (redução do volume de urina) até insuficiência renal
Septicemia (infecção generalizada por meio da circulação sanguínea)
Morte
Quadro 1 – Adaptado de “Níveis progressivos de gravidade da hipertermia” (Rodrigues LOC, 2008), incluído no Protocolo de Procedimentos Relacionados ao Calor, do Grupo Técnico do Instituto Brasileiro de Siderurgia, novembro de 2008.

Uma vez identificada a hipertermia (ou suspeita de), a conduta recomendada nestes casos depende do nível de gravidade com que cada caso se apresenta. No caso de João, no seu primeiro atendimento, quando já apresentava sinais de exaustão pelo calor, ele TERIA QUE:
Ser imediatamente colocado em repouso em ambiente refrigerado com ar-condicionado e ter o seu corpo resfriado com compressas de gelo e banhos de água fria ou gelada;
Receber hidratação oral com água gelada e parenteral (por via venosa) com soro fisiológico resfriado;
Ser monitorizado quanto aos seus sinais vitais, especialmente a função neurológica e o nível de consciência;
Ser submetido a exames complementares para avaliar o risco de lesões teciduais, renais e cardiovasculares.
Como acontece em muitos casos em que a exaustão pelo calor não é devidamente tratada, João evoluiu para o estado de choque hipertérmico, situação gravíssima com desfecho frequentemente fatal ou com graves sequelas, mesmo quando tratados intensivamente.
O choque hipertérmico prolongado torna-se praticamente indistinguível do choque septicêmico por causa da lesão celular que ocorre nas barreiras hemato-intestinais pelas altas temperaturas internas. O que distingue as duas situações é a história clínica de que a pessoa estava sadia imediatamente antes do evento e foi exposta a ambientes quentes.
Portanto, o diagnóstico da hipertermia deve sempre ser considerado entre as hipóteses, especialmente durante as “ondas de calor” ou durante atividades físicas realizadas em ambientes quentes .
No entanto, as doenças do calor não recebem muita atenção por parte dos profissionais da saúde, especialmente em regiões de clima tropical . Não é raro que ondas de calor resultem em aumento das mortes hospitalares e em creches, as quais são interpretadas como decorrentes de infecções hospitalares, como no caso do Rio de Janeiro em 1998.
Além disso, atletas amadores são submetidos a condições desfavoráveis para a prática de esportes competitivos sem quaisquer cuidados relacionados com o calor e atletas profissionais se submetem a condições extremas durante as competições, como era o caso de Ayrton Senna durante as corridas de Fórmula 1 .
É importante saber que a febre não é causada pela desidratação. É claro que se houver desidratação o organismo reduz sua produção de suor, e menos suor evaporado significa menos remoção de calor, o que acumula calor e aumenta a temperatura interna. Esta temperatura interna aumentada é hipertermia e não febre, ou seja, a desidratação, por si mesma não produz febre, mas sim hipertermia.
É claro que podemos encontrar febre e desidratação juntas, por exemplo, em consequência de infecções diarreicas sem reposição hídrica ou doenças e tratamentos que causem impossibilidade de alimentação adequada com ingestão de líquidos.
É interessante notar que a hipertermia pode também ser um risco para o desempenho em atividades envolvidas em grandes desafios emocionais e físicos, como o desmaio do personagem Riobaldo durante o tiroteio no local denominado Paredão, no romance de Guimarães Rosa: “Grande sertão: veredas”.
É possível prevenirmos os danos causados pelo calor?
Sim, até certo ponto, dependendo das condições socioeconômicas das populações nos diversos climas e dos extremos de temperatura que poderão surgir com a crise climática.
Podemos ampliar os cuidados com a realização de atividades físicas (profissionais, esportivas e de lazer) em ambientes quentes, que já estão bem definidos em diversas publicações científicas, sendo, inclusive, reguladas por leis. Estas normas consideram de forma objetiva as condições ambientais, mas é fundamental que os profissionais da saúde incluam em sua observação clínica os riscos dos indivíduos expostos a ambientes quentes analisando os fatores de risco individuais que eles apresentam.
O Quadro 2 resume os principais fatores de risco para hipertermia que precisam ser considerados diante da crise climática.

Quadro 2 – Fatores que aumentam o risco de hipertermia
Fator O que acontece?
Condições socioeconômicas de pobrezaNecessidade de trabalhar em ambientes quentes e úmidos e sob o sol
Menor acesso a habitação, transporte e condições de trabalho com conforto térmico ambiental
Menor acesso a recursos de saúde e mais doenças crônicas (cardiovasculares, diabetes, infecciosas, degenerativas e resultantes de trabalho prolongado)
Doenças cardiovascularesMenor capacidade do coração e sistema cardiovascular de redistribuição do fluxo sanguíneo
DesidrataçãoMenor capacidade de produzir suor para ser evaporado
Falta de aclimatação ao calorMenor produção de suor, menor capacidade de levar o sangue até a pele para ser resfriado, menos proteínas protetoras (chamadas de proteínas do estresse térmico)
Baixo condicionamento físicoMenor capacidade cardiovascular de redistribuição do fluxo sanguíneo, menor volume sanguíneo, menor aclimatação ao calor, menos proteínas do estresse
EnvelhecimentoMenor condicionamento físico, menor produção de suor e menor vasodilatação cutânea
InfânciaMenor controle cognitivo dos riscos, maior relação entre a superfície (pele) e o volume corporal, que aumenta ganho ou perda de calor no ambiente
Roupas inadequadasRedução da evaporação do suor, acúmulo de calor metabólico
ObesidadeMenor relação entre a superfície (pele) e a massa produtora de calor, que gera dificuldade de dissipação de calor metabólico
Doenças que afetam as glândulas sudoríparas Fibrose cística, anidrose congênita, neurofibromatose do tipo 1 e outras
Uso de drogas que afetam a noção de riscoÁlcool, cocaína, ecstasy, ácido lisérgico e outras drogas psicoativas
Medicamentos que afetem a coordenação sensorial ou as respostas autonômicasAntidepressivos, ansiolíticos, antiparkinsonianos, anticolinérgicos, anfetaminas, fenotiazínicos, haloperidol, anti-histamínicos, betabloqueadores
Privação do sonoAtrapalha os ajustes neurológicos da sudorese e da circulação
DiabetesNeuropatia autonômica, osmolaridade plasmática (concentração do sangue) alterada, sede e sudorese prejudicadas
Nefropatias(doenças renais)Alteração da osmolaridade, desidratação
Episódio anterior de hipertermiaMecanismo ainda desconhecido: predisposição genética?

Em resumo, para proteger as pessoas da hipertermia, precisamos considerar ao mesmo tempo:
os riscos térmicos presentes no ambiente (temperatura e umidade);
as características de saúde e socioeconômicas dos indivíduos (Quadro 2)
e o tipo, intensidade e duração do esforço realizado, ou seja, quanto calor será produzido pela musculatura e durante quanto tempo este calor será acumulado no organismo.
Além disso, profissionais da saúde e educadores devem estar alertas diante dos inúmeros (e enganosos) senso-comuns existentes sobre os efeitos da temperatura sobre a nossa saúde, especialmente o desproporcional medo do frio e a indiferença diante do calor .
Finalmente, mesmo que sejam pessoas residentes em climas tropicais, a maioria de nossa população é formada por pessoas pobres, por crianças, por gente idosa, e, muitas delas, doentes, que são especialmente vulneráveis ao calor.
A pobreza e a desigualdade de renda crescentes no sistema capitalista provavelmente irão agravar os efeitos da crise climática. Seremos capazes de mudar a causa e a consequência?
Não podemos nos esquecer das dezenas de pessoas que morreram na Zona Norte do Rio de Janeiro durante o fenômeno climático El Niño de 1998.
Que suas vidas perdidas sejam nosso aprendizado.


Agradeço as leituras atentas e sugestões de Thalma de Oliveira Rodrigues, Fátima Busko, Hiram Firmino, Clair José Benfica e Carlos Starling.

QOSHE - Vamos proteger as pessoas mais vulneráveis na crise climática? - Carlos Starling
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Vamos proteger as pessoas mais vulneráveis na crise climática?

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21.11.2023

Ilustração

Luiz Oswaldo Carneiro Rodrigues

Durante uma onda de calor no início de 1998, quando o Brasil passava por um fenômeno El Niño - menos intenso do que o atual, eu soube pelos jornais que doze bebês e cinquenta e quatro adultos haviam morrido de “infecção hospitalar”, os recém nascidos na maternidade Alexander Fleming e os demais no Hospital Estadual Carlos Chagas, ambos na Zona Norte do Rio de Janeiro. Naquela época, minha linha de pesquisa na universidade era sobre respostas do organismo ao calor e então suspeitei que aquelas mortes pudessem estar relacionadas com a onda de calor que vivíamos.
Entrei em contato com as equipes médicas daqueles hospitais e fui convidado para ir ao Rio e, quem sabe, contribuir de alguma maneira para o esclarecimento do excesso de mortes que estavam observando.

No dia seguinte (7/2/98), duas alunas de pós-graduação - Maura Regina Silva da Páscoa Vilela, Giane Amorim Ribeiro - e eu medimos as condições térmicas ambientais nas instalações hospitalares onde ocorreram as mortes. Verificamos que o ambiente era de alto risco para hipertermia e a maioria dos bebês e dos adultos falecidos poderia ter morrido em consequência de choque hipertérmico, uma condição na qual o organismo não consegue dissipar o calor e evolui para uma situação parecida com a septicemia.
Nossas conclusões foram enviadas para as autoridades de saúde e publicadas em alguns jornais e na Revista do Conselho Federal de Medicina . Algumas semanas depois, os exames laboratoriais confirmaram que as mortes não haviam sido causadas por infecção hospitalar. O programa Fantástico da TV Globo chegou a fazer uma breve reportagem no dia 8 de março, atribuindo - equivocadamente - aquelas mortes à “desidratação”. Em pouco tempo o assunto esfriou e as vítimas da onda de calor foram esquecidas, pois a crise climática parecia distante e - para os negacionistas - era ficção científica.
Quem eram as pessoas mortas?
Os bebês na maternidade Alexander Fleming (mantidos na incubadora quente, APESAR do calor no ambiente) e as pessoas que morreram no hospital público eram, em sua maioria: mulheres, pobres, pardas ou pretas, idosas e idosos, moradoras e moradores em barracos precários da periferia da Zona Norte do Rio, que tive a oportunidade de visitar alguns dias depois. Muitas das casas eram de telhado metálico, sem ventilação e extremamente quentes, o que explica porque cerca de 60% das vítimas chegaram mortas ao pronto atendimento.
O aumento de óbitos durante ondas de calor têm sido relatados em diversas pesquisas científicas, inclusive durante uma nova onda de calor no mesmo Rio de Janeiro, em 2010, pela climatologista Renata Libonati.
Vinte e cinco anos depois, o capitalismo devastador não reduziu o desmatamento e nem a emissão de gases de efeito estufa, então a crise climática se tornou emergência em saúde pública mundial e a população brasileira pode estar entre as mais vulneráveis do planeta.
O Brasil está localizado numa região com 17 tipos de climas, do subtropical, no extremo sul do país, até o tropical chuvoso na região amazônica, passando pelos climas do cerrado central e do semiárido nordestino. As populações brasileiras estão, portanto, submetidas a combinações variadas de temperatura e umidade relativa do ar, como, por exemplo, desde o frio seco de Maringá (PR), o frio úmido de São Joaquim (SC), o calor seco de Cabrobó (CE) até o calor úmido de Manaus (AM). Entre estes extremos citados, todas as combinações de temperatura e umidade relativa são possíveis em diferentes épocas do ano e em cada uma das microrregiões geo-climáticas os efeitos da crise climática serão imprevisíveis.
Neste cenário, seremos capazes de proteger a saúde das pessoas mais vulneráveis? Como será trabalhar, realizar exercícios físicos ou viver nesses ambientes de risco?
Em repouso, e especialmente durante atividades físicas, nosso corpo produz calor, que deve ser dissipado para o ambiente. A espécie humana, originada pela seleção natural em ambiente quente e seco, é bastante adaptada para viver nesse tipo de ambiente, por causa da nossa capacidade de retirar calor do corpo por meio da evaporação do suor produzido. Por isso, nossa sobrevivência diminui quando a remoção de calor está prejudicada pela pouca evaporação do suor, o que acontece nos ambientes quentes e úmidos ou com o uso de roupas inadequadas.
Quando o calor se acumula no organismo, os termômetros clínicos indicam aumento da temperatura corporal, a chamada hipertermia (também chamada em........

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