Ao bloquearem durante seis meses a aprovação do pacote de ajuda à Ucrânia, os eleitos do Partido Republicano na Câmara dos Representantes dos Estados Unidos deram esses longos meses de vantagem aos invasores russos. A culpa principal cabe a uma boa parte dos líderes republicanos que aceitam ser reféns e paus mandados de Donald Trump e dos seus jogos pessoais. Trump via na iniciativa apenas o lado do seu interesse eleitoral, ao considerar que a ajuda iria ter um impacto positivo na imagem do seu rival, o presidente Joe Biden. A Ucrânia e os seus aliados europeus não deverão esquecer esse facto perverso, caso esse indivíduo vença as presidenciais deste ano. Que confiança poderão ter as democracias europeias numa América liderada por Trump?

Entretanto, as forças russas tentaram aproveitar-se da escassez de munições e de outros meios de resposta e quebrar a resistência ucraniana, que é um ato de legítima defesa, consentâneo com o artigo 51.º da Carta das Nações Unidas. Segundo dados fornecidos pelo presidente Zelensky, durante a reunião da NATO da semana passada, os russos disparam em direção à Ucrânia, desde o início do ano, cerca de 1200 mísseis, mais de 1500 drones e 8500 bombas teleguiadas. As centrais térmicas foram os principais alvos visados, embora também tenham sido atingidas zonas residenciais. Kiev e numerosas outras cidades estão praticamente desprovidas de meios de defesa aérea.

Apesar de tudo, os avanços do inimigo ao nível do terreno têm sido modestos. Por três razões essenciais: a coragem dos militares ucranianos, que defendem o que é seu com um patriotismo e uma abnegação exemplares; a existência em larga escala de minas e outros obstáculos; e a falta de preparação e de motivação das tropas russas, que não compreendem a razão de uma guerra contra a Ucrânia e se baseiam em recrutamentos forçados ou na mobilização de criminosos que saíram diretamente das colónias penitenciárias para a frente de batalha, bem como em mercenários vindos da pobreza do Nepal ou da Índia e recrutados com base em falsas promessas.

A tudo isto se deve acrescentar o engenho das Forças Especiais ucranianas, que já afundaram um número significativo de navios inimigos nas águas da Crimeia e obrigaram o resto da frota russa a refugiar-se na parte oriental do Mar Negro. O corredor marítimo, essencial para a exportação dos cereais ucranianos, e que tanto trabalho diplomático exigiu para funcionar apenas alguns meses, está agora aberto, graças às manobras especiais da Marinha ucraniana.

Mas sem a ajuda americana e, ao seu nível, a europeia, a Ucrânia poderia acabar por ser obrigada a capitular. Por isso, a aprovação do pacote americano era absolutamente indispensável. Irá agora permitir financiar as munições, as baterias de defesa antiaérea, os mísseis, a inteligência militar, a desminagem de certas zonas, enfim tudo o que é essencial para travar e, finalmente, rechaçar a ofensiva russa, ilegal perante a lei internacional, mas alimentada por uma visão imperialista e passadista que tem no seu centro Vladimir Putin.

A capitulação da Ucrânia, se acontecesse, seria interpretada em Moscovo como um encorajamento para invadir outros países vizinhos e procurar destruir a UE e a NATO. Bem como para reforçar a aliança com a China e a Coreia do Norte, pondo em perigo a paz no Extremo Oriente, contra Taiwan, o Japão, a Coreia do Sul e abrindo as portas a possíveis conflitos armados entre, de um lado, a China e, do outro lado, o Vietname e as Filipinas.

É verdade que uma parte importante dos fundos ora libertados serão gastos nos EUA. Mas a Ucrânia não conseguirá expulsar os agressores despejando notas de dólar sobre eles. Precisa de adquirir armas e munições. Essas sim, deverão ser utilizadas contra os invasores, até se conseguir fazer Moscovo compreender que chegou a altura de aceitar um genuíno processo de paz.

Convém acrescentar que a passagem da lei de ajuda à Ucrânia tem vários aspetos positivos, na cena interna americana. Reforçou o poder de Joe Biden. E a sua imagem. Dividiu os Republicanos: cerca de metade votou a favor na Câmara dos Representantes e a maioria disse que sim, no Senado. É revelador que apenas 18 senadores tenham votado esta semana contra a lei, quando em fevereiro o número fora 29. Vejo aqui um sinal de perda de influência de Donald Trump. É um facto animador. Como também é reconfortante ver que a mobilização dos países europeus não perdeu, antes ganhou, um novo fôlego. Falta agora repetir sem hesitação que esta agressão russa ultrapassa as fronteiras da Ucrânia. Ameaça igualmente as nossas liberdades e a paz em que vivemos. Não pode continuar.

QOSHE - Ucrânia: da legítima defesa a um processo de paz - Victor Ângelo
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Ucrânia: da legítima defesa a um processo de paz

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26.04.2024

Ao bloquearem durante seis meses a aprovação do pacote de ajuda à Ucrânia, os eleitos do Partido Republicano na Câmara dos Representantes dos Estados Unidos deram esses longos meses de vantagem aos invasores russos. A culpa principal cabe a uma boa parte dos líderes republicanos que aceitam ser reféns e paus mandados de Donald Trump e dos seus jogos pessoais. Trump via na iniciativa apenas o lado do seu interesse eleitoral, ao considerar que a ajuda iria ter um impacto positivo na imagem do seu rival, o presidente Joe Biden. A Ucrânia e os seus aliados europeus não deverão esquecer esse facto perverso, caso esse indivíduo vença as presidenciais deste ano. Que confiança poderão ter as democracias europeias numa América liderada por Trump?

Entretanto, as forças russas tentaram aproveitar-se da escassez de munições e de outros meios de resposta e quebrar a resistência ucraniana, que é um ato de legítima defesa, consentâneo com o artigo 51.º da Carta das Nações Unidas. Segundo dados fornecidos pelo presidente Zelensky, durante a reunião da NATO da semana passada, os russos disparam em direção à Ucrânia, desde o início do ano, cerca de 1200........

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