O Teatro Lira Paulistana é inesquecível. Situado no subsolo de um sobrado na rua Teodoro Sampaio, 1091, em Pinheiros, numa espécie de catacumba com um palco cercado por arquibancadas de madeira, foi a casa de shows mais efervescente da cidade na primeira metade dos anos 80.

Quem entrasse ali sairia modificado pela energia transformadora da chamada Vanguarda Paulista, movimento que reunia jovens artistas e grupos como Itamar Assumpção, Tetê Espíndola, Premeditando o Breque, Rumo, Língua de Trapo, entre outros.

Nos seus últimos anos, o Lira foi também um berçário do rock nacional, onde se apresentaram bandas como Titãs e Ultraje a Rigor. O lugar era pequeno, suportava no máximo 250 pessoas e com 150 já ficava lotado. Mas era incrivelmente quente e emanava inquietude.

Agora, quando se completa 45 anos de sua fundação, o Lira vai ganhar um novo documentário. Já houve um primeiro, "Lira Paulistana e a Vanguarda Paulista", lançado em 2013 e dirigido por um dos proprietários da casa, Riba de Castro. Concentrou-se em entrevistas com artistas que frequentaram seu palco.

Dessa vez a ideia é fazer um filme com uma pegada mais sociológica e política, que será dirigido por Joel Pizzini. "A gente quer fazer um documentário inserindo o Lira no momento histórico em que ele existiu", explica Chico Pardal, outro ex-sócio que está envolvido com a produção. "Naquele momento ele deu certo, é lógico, porque tinha toda a vanguarda musical. Mas o que propiciou tudo isso, o que estava acontecendo em São Paulo e na sociedade?"

O tempo de vida do Lira Paulistana, entre 1979 e 1986, coincide com vários fatos associados ao fim da ditadura e à abertura política. Apesar das limitações do espaço, sua importância cultural foi gigantesca.

Nasceu no ano da Lei da Anistia, quando os exilados começaram a voltar para o Brasil, atravessou as manifestações das Diretas Já e acabou um ano depois de um dos últimos suspiros ditatoriais, a eleição indireta de Tancredo Neves, vitorioso num embate com Paulo Maluf.

"O Lira durou pouco, mas teve o mérito de transformação da sociedade. Era o momento da anistia, da formação do PT e São Paulo tinha vivido um marasmo cultural muito grande", diz Castro, também autor de um livro sobre a casa. Bem localizada, a meio caminho da PUC e da USP, era um lugar de liberdade e de alegria para uma geração que tinha crescido num regime repressor.

São Paulo tinha poucos espaços culturais e ao mesmo tempo uma juventude inquieta e sedenta por música boa e afinada com o novo período histórico que começava. Entrar no seu porão parecia uma experiência transgressora que abria horizontes. O palco era baixo e os artistas se apresentavam a poucos metros do público, criando um ambiente de intimidade e empatia.

Além disso, o Lira foi mais do que um espaço de shows. Tornou-se também um selo fonográfico e um jornal, além de produzir espetáculos a céu aberto na praça em frente, a Benedito Calixto, na USP e na avenida Paulista. Com o selo da casa, Itamar Assumpção lançou seu primeiro disco, "Beleléu Leléu Eu", em 1981. Foi uma ideia de um terceiro sócio, Wilson Souto Junior, que logo em seguida foi convidado para ser diretor artístico da gravadora Continental.

Nasceu daí uma parceria frutífera entre o Lira e a Continental que rendeu 19 LPs, entre eles "Diletantismo", do Grupo Rumo, e "Quase Lindo", do Premeditando o Breque.

Quando ao jornal também se chamava Lira Paulistana e, além de reportagens, exibia um guia de atrações em São Paulo no estilo da revista Time Out londrina. Lançado em 1981, circulou em 12 edições e foi o primeiro roteiro de artes e espetáculos da cidade. Sua tiragem semanal era de 30 mil exemplares.

Em 1986, o Lira teve um fim tranquilo, deixando nas pessoas que o construíram a sensação de missão cumprida. Simplesmente fechou as portas porque completou seu ciclo virtuoso e os artistas que ajudou a promover se tornaram grandes demais para o seu pequeno porte. Ficaram, porém, muitas saudades.

Mais

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

Assinantes podem liberar 5 acessos por dia para conteúdos da Folha

Assinantes podem liberar 5 acessos por dia para conteúdos da Folha

Assinantes podem liberar 5 acessos por dia para conteúdos da Folha

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Você já conhece as vantagens de ser assinante da Folha? Além de ter acesso a reportagens e colunas, você conta com newsletters exclusivas (conheça aqui). Também pode baixar nosso aplicativo gratuito na Apple Store ou na Google Play para receber alertas das principais notícias do dia. A sua assinatura nos ajuda a fazer um jornalismo independente e de qualidade. Obrigado!

Mais de 180 reportagens e análises publicadas a cada dia. Um time com mais de 200 colunistas e blogueiros. Um jornalismo profissional que fiscaliza o poder público, veicula notícias proveitosas e inspiradoras, faz contraponto à intolerância das redes sociais e traça uma linha clara entre verdade e mentira. Quanto custa ajudar a produzir esse conteúdo?

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.

QOSHE - Quem foi ao Lira Paulistana nunca esquece - Vicente Vilardaga
menu_open
Columnists Actual . Favourites . Archive
We use cookies to provide some features and experiences in QOSHE

More information  .  Close
Aa Aa Aa
- A +

Quem foi ao Lira Paulistana nunca esquece

14 0
07.03.2024

O Teatro Lira Paulistana é inesquecível. Situado no subsolo de um sobrado na rua Teodoro Sampaio, 1091, em Pinheiros, numa espécie de catacumba com um palco cercado por arquibancadas de madeira, foi a casa de shows mais efervescente da cidade na primeira metade dos anos 80.

Quem entrasse ali sairia modificado pela energia transformadora da chamada Vanguarda Paulista, movimento que reunia jovens artistas e grupos como Itamar Assumpção, Tetê Espíndola, Premeditando o Breque, Rumo, Língua de Trapo, entre outros.

Nos seus últimos anos, o Lira foi também um berçário do rock nacional, onde se apresentaram bandas como Titãs e Ultraje a Rigor. O lugar era pequeno, suportava no máximo 250 pessoas e com 150 já ficava lotado. Mas era incrivelmente quente e emanava inquietude.

Agora, quando se completa 45 anos de sua fundação, o Lira vai ganhar um novo documentário. Já houve um primeiro, "Lira Paulistana e a Vanguarda Paulista", lançado em 2013 e dirigido por um dos proprietários da casa, Riba de Castro. Concentrou-se em entrevistas com artistas que frequentaram seu palco.

Dessa vez a ideia é fazer um filme com uma pegada mais sociológica e política, que será dirigido por Joel Pizzini. "A gente quer fazer um documentário inserindo o Lira no momento histórico em que ele existiu", explica Chico Pardal, outro ex-sócio........

© UOL


Get it on Google Play