Sensação térmica da cidade do Rio de Janeiro: 60 graus.

Às 20 horas de sexta-feira, meu marido sentiu cheiro de queimado e escutou gritos na rua: fogo, fogo, fogo.

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O prédio em que moramos estava pegando fogo.

Entrei em pânico: não consegui fugir pela escada.

Dez minutos depois, escutamos as sirenes dos bombeiros.

Mais de três horas para conseguirem apagar o fogo.

Quando finalmente conseguiram, uma nuvem de fumaça engoliu os andares do prédio.

Eu e meu marido começamos a passar mal: olhos ardendo, não conseguíamos respirar.

Por um instinto de sobrevivência, meu marido tomou uma decisão: "Vamos para o telhado".

E me levou para fora do apartamento, que estava tomado pela fumaça sufocante.

Subimos no telhado do prédio e, para fugir da fumaça, fomos para o lado da coluna que não foi atingida pelo fogo.

Às 23 horas, escutamos três batidas fortes. "Deve ser um bombeiro batendo na porta do apartamento para nos resgatar".

Meu marido correu para o lado do prédio que foi devorado pelo fogo e viu um bombeiro na varanda de um apartamento. Ele gritou: "Bombeiro, bombeiro, bombeiro. Aqui, estamos no telhado, aqui, no telhado".

O bombeiro direcionou a lanterna para o telhado e viu meu marido.

"Estou indo aí".

Dois bombeiros subiram no telhado. Um rapaz, muito novo, não devia ter mais de 20 anos, me olhou e perguntou se eu estava bem. Eu vi o rosto de um anjo vestido com o pesado capacete e uniforme de bombeiro, amarelo e preto.

"O perigo já passou, pode ficar tranquila. O perigo já passou. O fogo já foi controlado."

E meu anjo sorriu para mim.

Ele me disse com uma voz que imediatamente me tranquilizou: "Precisamos descer, pode ficar tranquila que o perigo já passou, mas vocês não podem ficar aqui. O prédio tem que ser evacuado".

Ele disse que eu poderia entrar no apartamento para pegar o que precisasse. "Mas tem que ser muito rápido."

Eu estava com a mesma roupa que havia caminhado na praia algumas horas antes do incêndio: bermuda, camiseta do Carnaval de 2020 e sandália havaiana.

Em menos de um minuto, o tempo que fiquei no apartamento, peguei uma bolsa e coloquei nela um caderno de 360 folhas, as canetas gel que uso para escrever, meu óculos de grau e meu celular. Mais nada!

Foi tudo o que salvei do incêndio.

Meu anjo continuou ao meu lado e, com muita delicadeza e paciência, me guiou na descida dos 20 andares do prédio, degrau a degrau.

"Pode descer devagar. Se precisar, pode parar. Está respirando bem? Precisa de oxigênio? Está tudo bem? Quer que eu lhe carregue?", ele me perguntava a todo momento.

Eu estava com muito medo de escorregar ou tropeçar com a sandália havaiana e quebrar a perna: a escada estava inundada, parecia uma cachoeira de água quente descendo, muitas mangueiras e canos nos degraus. Meu anjo ia tirando todos os obstáculos do meu caminho.

Eu não conseguia enxergar nada: meus óculos estavam totalmente embaçados. Tenho mais de cinco graus de miopia.

Segurei com firmeza o corrimão e segui a voz do meu anjo, degrau a degrau, bem devagar para não escorregar ou tropeçar.

Como se fosse um filme de catástrofe, vi muitos bombeiros exaustos sentados nos degraus; outros subindo e descendo rapidamente a escada. Ouvi seus gritos em um rádio transmissor: "As duas últimas vítimas estão descendo, as vítimas estão descendo."

Só que não era o filme "Inferno na Torre". Foi o momento mais surreal para mim: quando escutei que eu e meu marido éramos as últimas vítimas resgatadas de um incêndio.

Meia-noite: cheguei ao último degrau. Uma ambulância na garagem do prédio prestava socorro aos moradores que passaram mal.

"Está precisando de oxigênio?"

Não, eu não precisava de oxigênio.

Meu anjo me deu um sorriso.

Sentei em um banco no parquinho em frente ao prédio. Não me despedi do meu anjo, não dei um abraço nele, não agradeci. Não consegui dizer uma só palavra. Estava em estado de choque.

No outro banco da pracinha, um morador de rua dormia tranquilamente, como se nada estivesse acontecendo.

Uma vizinha me contou que um ar-condicionado explodiu e o fogo se alastrou rapidamente para os andares de cima. Dois apartamentos foram totalmente destruídos e os demais foram bastante danificados.

Eu e meu marido fomos os últimos moradores resgatados. Ninguém sabia que estávamos no telhado. Por um milagre, meu marido viu o bombeiro na varanda e gritou.

De madrugada, chegamos à casa do irmão do meu marido.

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Eu estava em estado de choque, sem conseguir dizer uma só palavra. Tomei um longo banho, mas o cheiro da fumaça continuou impregnado na minha pele e no meu cabelo.

Só conseguia pensar que eu e meu marido poderíamos ter morrido intoxicados.

Chorando muito, gravei um áudio e enviei para alguns amigos jornalistas.

"Meu nome é Mirian Goldenberg. Eu estava no telhado com meu marido, quando ele viu um bombeiro na varanda de um apartamento do meu prédio que estava sendo devorado pelo fogo. Meu marido gritou e imediatamente dois bombeiros subiram para o telhado para nos resgatar. E um anjo, um anjo, um menino muito novinho, veio me salvar. Ele me guiou para descer os 20 andares, estava tudo alagado, eu estava de sandália havaiana, sem conseguir enxergar nada porque descia muita água pelos degraus da escada. Eu estava com muito medo de escorregar e ele me guiou com muito carinho e delicadeza. Ele salvou a minha vida: eu estava ficando intoxicada, eu estava em pânico. Eu quero muito agradecer a esse anjo. Ele me guiou e me acalmou muito. Quero muito descobrir o nome do bombeiro que salvou a minha vida. Eu só preciso agradecer ao meu anjo."

Ainda não consegui descobrir o nome do anjo que salvou a minha vida.

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Um anjo salvou a minha vida

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29.11.2023

Sensação térmica da cidade do Rio de Janeiro: 60 graus.

Às 20 horas de sexta-feira, meu marido sentiu cheiro de queimado e escutou gritos na rua: fogo, fogo, fogo.

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O prédio em que moramos estava pegando fogo.

Entrei em pânico: não consegui fugir pela escada.

Dez minutos depois, escutamos as sirenes dos bombeiros.

Mais de três horas para conseguirem apagar o fogo.

Quando finalmente conseguiram, uma nuvem de fumaça engoliu os andares do prédio.

Eu e meu marido começamos a passar mal: olhos ardendo, não conseguíamos respirar.

Por um instinto de sobrevivência, meu marido tomou uma decisão: "Vamos para o telhado".

E me levou para fora do apartamento, que estava tomado pela fumaça sufocante.

Subimos no telhado do prédio e, para fugir da fumaça, fomos para o lado da coluna que não foi atingida pelo fogo.

Às 23 horas, escutamos três batidas fortes. "Deve ser um bombeiro batendo na porta do apartamento para nos resgatar".

Meu marido correu para o lado do prédio que foi devorado pelo fogo e viu um bombeiro na varanda de um apartamento. Ele gritou: "Bombeiro, bombeiro, bombeiro. Aqui, estamos no telhado, aqui, no telhado".

O bombeiro direcionou a lanterna para o telhado e viu meu marido.

"Estou indo aí".

Dois bombeiros subiram no telhado. Um rapaz, muito novo, não devia ter mais de 20 anos, me olhou e perguntou se eu estava bem. Eu vi o rosto de um anjo vestido com o pesado capacete e uniforme de bombeiro, amarelo e preto.

"O perigo já passou, pode ficar tranquila. O perigo já passou. O fogo já foi controlado."

E meu anjo sorriu para mim.

Ele me disse com uma voz que imediatamente me tranquilizou: "Precisamos descer, pode ficar........

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