Neste começo de 2024, é preciso recordar o amargo começo de 2023.

Depois de quatro anos sob o mandato de Jair Bolsonaro e seu governo de forte apelo autoritário, reconhecido pela condução catastrófica da pandemia e pela permanente crise instaurada entre os Poderes da República, vivemos uma tentativa de insurreição contra o resultado de eleição presidencial de 2022. Os atos golpistas de 8 de janeiro contestavam o processo eleitoral e culminaram com a depredação de edifícios e do patrimônio público na praça dos Três Poderes.

O objetivo da turba era claro: conquistar o apoio dos militares, que tinham amplo espaço no governo anterior, e reestabelecer o mandato do ex-presidente da República.

Assim, os atos golpistas seriam uma espécie de extensão do projeto autoritário que permeou toda a gestão do ex-presidente. Teve clara inspiração na invasão do Capitólio, nos EUA, dois anos antes. Donald Trump também havia contestado o resultado da eleição que elegeu Joe Biden, e o clima de instabilidade culminou com a depredação do Congresso dos EUA, deixando um saldo de cinco mortos e uma mancha na democracia norte-americana.

Podemos dizer que os atos golpistas não foram eventos isolados, mas consequência de uma reconhecida crise da democracia no mundo, fomentada em grande parte pela ascensão de partidos e líderes de extrema direita, mas com a importante participação de atores da esquerda, como ocorre com Venezuela e Nicarágua. Esses governos de natureza autocrática tentam, por exemplo, cooptar as instituições —o Judiciário e o Executivo— assim como põe em prática a perseguição dos que são considerados adversários.

Em "Como as Democracias Morrem", Steven Levitsky e Daniel Ziblatt escrevem que, além de Constituições e instituições eficientes, a democracia, para funcionar, necessita de regras tácitas, muitas vezes não escritas, mas que, durante anos, foram pilares da convivência entre adversários de ideologias opostas.

A confiança no sistema eleitoral é um desses pilares. Não por acaso, é comum que o candidato derrotado cumprimente o eleito e que todo e qualquer aperfeiçoamento no sistema deva ser amplamente debatido pelos atores e pela sociedade apenas antes do pleito.

Outro pilar são os partidos políticos, que deveriam despersonalizar a política em prol de projetos coletivos. Mas o que vimos nos últimos anos foi um crescente ódio à política e aos partidos, muitas vezes fomentado por instituições republicanas, que em nada contribuíram para o avanço da democracia.

Mais

Ainda que os modelos de democracia que conhecemos sejam imperfeitos, parece ser consenso entre os defensores dos valores humanistas que é o regime político que garante —ou deveria, ao menos— direitos como a igualdade, a liberdade e a segurança. Até o momento, não há experiências que apontem outros caminhos possíveis que não o amadurecimento das democracias para o bem-estar de uma sociedade.

Basta olharmos para o último ano sem o governo Bolsonaro. A tensão entre os Poderes voltou a um patamar aceitável, e as tensões mais estúpidas —das fake news à retórica autocrática do ex-presidente e de seu séquito— deixou de ser pauta primeira da imprensa. Sem distrações, podemos nos concentrar nos reais problemas, que são muitos, e avançar para que o nosso modelo imperfeito de democracia se reverta em benefícios para todos os brasileiros.

Em um país de pouca memória, é importante que o 8 de Janeiro seja uma data para refletirmos sobre a nossa história recente. Se, por um lado, é importante ressaltar que todos os nossos avanços civilizatórios ocorreram neste breve período democrático —a estabilidade econômica, as políticas sociais e de reparação histórica—, por outro, continuamos uma sociedade profundamente desigual.

Nem todos conseguem ter direito à cidadania plena, com respeito ao princípio da equidade. Nem todos têm acesso à educação, à saúde, à moradia, à segurança pública, ao trabalho, entre as muitas necessidades que contribuem para a dignidade da vida humana. Mas, para tanto, não há caminho possível longe da democracia.

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Mesmo imperfeita, democracia é o único caminho para cidadania plena

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05.01.2024

Neste começo de 2024, é preciso recordar o amargo começo de 2023.

Depois de quatro anos sob o mandato de Jair Bolsonaro e seu governo de forte apelo autoritário, reconhecido pela condução catastrófica da pandemia e pela permanente crise instaurada entre os Poderes da República, vivemos uma tentativa de insurreição contra o resultado de eleição presidencial de 2022. Os atos golpistas de 8 de janeiro contestavam o processo eleitoral e culminaram com a depredação de edifícios e do patrimônio público na praça dos Três Poderes.

O objetivo da turba era claro: conquistar o apoio dos militares, que tinham amplo espaço no governo anterior, e reestabelecer o mandato do ex-presidente da República.

Assim, os atos golpistas seriam uma espécie de extensão do projeto autoritário que permeou toda a gestão do ex-presidente. Teve clara inspiração na invasão do Capitólio, nos EUA, dois anos antes. Donald Trump também havia contestado o resultado da eleição que elegeu Joe Biden, e o clima de instabilidade culminou com a depredação do Congresso dos EUA, deixando um saldo de cinco mortos e uma mancha na democracia norte-americana.

Podemos dizer que os atos golpistas não foram eventos isolados, mas consequência de uma reconhecida crise da democracia no mundo, fomentada em grande parte pela ascensão de partidos e........

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