Subi e desci montanhas para conhecer uma terra de mulheres. Comandada por elas na Economia, na Educação, na Cultura, no Esporte, na Solidariedade.

Luisas, com “Z” ou com “S”, há muitas. Cineasta, empresária, professora.

Ana e Sara são comerciantes. Vivi, chef de cozinha. Egilda, dona de um restaurante.

Camile administra uma pousada, mesmo trabalho da Priscila. Paula é terapeuta, do corpo e da mente. Patricia, bióloga e ambientalista.

Todas freguesas da Stefani que em seu mercado, aberto de terça a domingo, supre o bairro do Souza de velas a fraldas, de vinho a picolé.

Uma vez por semana esse time de mulheres se reúne para um futebol. Jogo aberto, sem catimba, que pode terminar 10 a 8 ou 15 a 10.

Nesse pedacinho do estado de São Paulo, o forasteiro percebe algo diferente assim que chega. E não, não é pela limpeza das ruas ou pelas crianças bem cuidadas que brincam na tarde morna. O que revela o poder das mulheres é a organização da comunidade. As moradoras criaram um projeto de internet barata e acessível. São elas que produzem as radionovelas e os festivais culturais. Tudo gravado e arquivado, para que a memória se renove.

Quando um bebê nasce, todas se juntam e oferecem à mãe quarenta dias de alimentação gratuita. Na hora mais importante, atenção e amor da vizinhança. Lá, é assim.

Numa dessas armadilhas do destino, a cidade de mulheres recebeu nome de homem. Chama-se Monteiro Lobato, homenagem ao escritor do Sítio do Pica-pau Amarelo, que foi dono de terras na região. Antes disso, o nome era Buquira. Para os indígenas, Rio de Pássaros.

Muitos insistem em ter o nome original de volta, não só pelo poético significado, mas pelas polêmicas que envolvem o escritor, que teria se mostrado racista e machista no passado. Não é currículo bem visto em lugar nenhum, menos ainda por aqui. “Buquira hoje e sempre”, a gente ouve pela cidade.

Não é só o nome que puxa prosa. A localização também. Pra uns é vale do Paraíba, pra outros é serra da Mantiqueira. Agora é um homem que me ajuda a entender.

- Como pode, estar, ao mesmo tempo, na serra e no vale, seu Luiz Roberto?

- Estando, uai.

- Uai é coisa de mineiro. Não estamos em São Paulo?

Luiz Roberto explica com paciência. É homem experiente, que viajou mundo afora sem perder a simplicidade da roça.

- Tem hora que confunde mesmo. Então, a gente vai “caipirando” por aí.

- “Caipirando”?

É o filho da terra a brincar com o turista.

- “Caipirando” é misturando tudo, uai. Lembra dos tempos do Café com Leite? É o café do paulista com o leite do mineiro, tudo misturado. A gente nem percebe e fala o “L” “garrado” com o “R”.

- Como assim?

- É o “ Fecharll a porllta”. É o “Barll do Carllos, que é irrllmão do ferrllnando”...

Com a língua no céu da boca, Roberto carrega ainda mais no caipirês.

- É “armoço”, em vez de almoço; é “úrtimo” no lugar de último. O “pessoár” também fala “vermeio” em vez de vermelho e “espeio” ao invés de espelho.

Ele arruma o embornal e levanta o boné.

- Por que vai tão cedo?

- Esse sol é de chuva, moço.

- Mas o céu está azul e sem nuvem.

- Tá sentindo o ventinho? É mineiro. Mais duas horas e vem água.

- E amanhã?

O amigo dos ventos é cuidadoso.

- Com certeza, certeza mesmo? Sei, não... até uns anos, antes dessa tal de crise climática, não tinha mistério. Vento do Paraná trazia até granizo. Se vinha do Rio, com nuvem gorda por cima desses morros, a gente recolhia o gado que era tempestade de raio. Das bandas da capital, surgia chuva miúda que levava dias. Hoje molha na seca e estia no verão. Como diziam nos tempos do meu pai, “a gente tá mais perdido que cego em tiroteio.”

- E então como você faz pra saber do clima?

- Dou meus palpites e depois confirmo a previsão no jornal da tevê, com a moça do tempo.

A gente ri junto e se encontra no dia seguinte. Luiz Roberto me abraça na Livre Livraria. A Livraria da Lessandra, no centro de Monteiro Lobato. É mais uma empresária de talento e coragem nessa terra de mulheres fortes. A livreira cuida sozinha do próprio negócio, aquele em que poucos acreditavam e que hoje reúne escritores e leitores até de outros países.

Lessandra distribuiu convites, fez contatos, divulgou a tarde de conversa sobre crônicas. Chamou todo mundo pro lançamento do meu livro, o Birinaites, Catiripapos e Borogodó.

A escritora Sylvia Mello, autora de 7 livros, fez a mediação. Veio tanta gente que a Livre Livraria lotou. As cadeiras acabaram e muitos participaram da calçada, unidos pela Literatura.

Naquele sábado de sol, voamos juntos na correnteza serena de um Rio de Pássaros.

*Luis Cosme Pinto é autor do livro de crônicas Birinaites, Catiripapos e Borogodó.

**Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.

QOSHE - Rio de Pássaros - Luis Cosme Pinto
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Rio de Pássaros

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20.01.2024

Subi e desci montanhas para conhecer uma terra de mulheres. Comandada por elas na Economia, na Educação, na Cultura, no Esporte, na Solidariedade.

Luisas, com “Z” ou com “S”, há muitas. Cineasta, empresária, professora.

Ana e Sara são comerciantes. Vivi, chef de cozinha. Egilda, dona de um restaurante.

Camile administra uma pousada, mesmo trabalho da Priscila. Paula é terapeuta, do corpo e da mente. Patricia, bióloga e ambientalista.

Todas freguesas da Stefani que em seu mercado, aberto de terça a domingo, supre o bairro do Souza de velas a fraldas, de vinho a picolé.

Uma vez por semana esse time de mulheres se reúne para um futebol. Jogo aberto, sem catimba, que pode terminar 10 a 8 ou 15 a 10.

Nesse pedacinho do estado de São Paulo, o forasteiro percebe algo diferente assim que chega. E não, não é pela limpeza das ruas ou pelas crianças bem cuidadas que brincam na tarde morna. O que revela o poder das mulheres é a organização da comunidade. As moradoras criaram um projeto de internet barata e acessível. São elas que produzem as radionovelas e os festivais culturais. Tudo gravado e arquivado, para que a memória se renove.

Quando um bebê nasce, todas se juntam e oferecem à mãe quarenta dias de........

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