Os recentes acontecimentos que conduziram à demissão do primeiro-ministro vieram minar a confiança dos cidadãos no Estado de direito, nos políticos, nos partidos, na administração pública, com incidência na administração da justiça. Em francês, une débâcle. A dignidade do Estado e dos cidadãos foi ferida. O descrédito instalou-se. Agora é ainda encarado com (mau) humor nas redes sociais, mas nada garante que impulsos menos cordatos não despontem.

Em 1972, Pierre Bourdieu definiu capital social como um dos quatro tipos de capital: social, económico, cultural e simbólico. Estes tipos de capital determinam as trajetórias sociais.

Estes acontecimentos têm um impacto muito negativo no já escasso capital social em Portugal, um tipo de capital que se pode resumir em três palavras: confiança entre as pessoas. Quanto maior for o capital social num país, maior a possibilidade de as pessoas, mesmo desconhecidas, se juntarem, desenvolverem negócios, estabelecerem parcerias de todos os tipos, e prosperarem.

No nível mais básico, capital social refere-se aos relacionamentos com outras pessoas além da família e local de trabalho. No nível intermédio, estão as redes sociais a que se pertence e as normas de reciprocidade, confiabilidade e boa vontade que delas surgem.

No nível mais avançado, capital social são as interações individuais e familiares na comunidade local, na sociedade em geral e no mundo. Reflete a natureza e a força da marca pessoal e compartilhada – o que se representa. Cresce e desenvolve-se à medida que se aproveita o capital social para um bem maior, transformando-o em impacto social.

No nível de domínio, capital social é uma componente chave para a construção e manutenção da democracia. Há quem lhe chame o lubrificante da democracia.

É possível através de estudos sociais determinar a quantidade de capital social num país. Os países mais desenvolvidos, mais ricos, são os que apresentam mais capital social. Os nórdicos estão em primeiro lugar. Portugal está entre os piores na Europa. Perdeu-se o “palavra de honra”.

Robert Putnam (2000), que foi Dean da John F. Kennedy School of Government, Universidade de Harvard, descobriu que capital social substancial tem o poder de melhorar a saúde, reduzir o desemprego e melhorar a vida de formas significativas. Portanto, qualquer diminuição no envolvimento cívico poderá criar consequências graves para a sociedade. A sua interpretação de uma miríade de questões levou Putnam a concluir que, para que a América prospere, os seus cidadãos devem conectar-se. Este axioma é universal.

Os dois elementos fundamentais para que haja confiança, ou, dito de outro modo, para que não haja desconfiança, são a transparência e accountability (prestação de contas, assunção de responsabilidades). A desconfiança é um obstáculo ao estabelecimento e desenvolvimento de relações, de qualquer tipo, duradouras e saudáveis. É como um campo minado.

Todavia, a situação em Portugal é tão grave que ser transparente e accountable não conduz necessariamente à confiança. Muitas vezes a transparência, ou seja, as pessoas e organizações que cultivam ou foram educadas na transparência como modo de ser e de atuar, e que assumem sem temor a responsabilidade dos seus atos, não são compreendidas pois a sociedade está de tal maneira habituada a funcionar em embustes e traições que não está preparada para relações de confiança como a norma social predominante e assume que a transparência é apenas mais uma artimanha para enganar.

O habitus (Bourdieu) em Portugal é, de facto, a desconfiança. Um ente transparente (pessoa, organização) é estranho e por isso muitas vezes olhado como o oposto – como desconfiável. Isto acontece em todo o tipo de relações sociais, entre as quais entre os sexos, como por exemplo, mulheres que não confiam nos homens em geral e vice-versa em consequência de uma má experiência. Afinal, trata-se sempre e apenas de seres da mesma espécie humana e não de espécies diferentes e antagónicas.

Para salvar a democracia e o Estado de direito da derrocada fatal é indispensável que os líderes políticos e da administração pública acordem da atual alucinação, sarem a ferida do descrédito e restabeleçam a confiança e a dignidade do Estado, dos cidadãos, dos partidos, da administração pública.

QOSHE - Portugal alucinado: mais destruição do escasso capital social - Nuno Cintra Torres
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Portugal alucinado: mais destruição do escasso capital social

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22.11.2023

Os recentes acontecimentos que conduziram à demissão do primeiro-ministro vieram minar a confiança dos cidadãos no Estado de direito, nos políticos, nos partidos, na administração pública, com incidência na administração da justiça. Em francês, une débâcle. A dignidade do Estado e dos cidadãos foi ferida. O descrédito instalou-se. Agora é ainda encarado com (mau) humor nas redes sociais, mas nada garante que impulsos menos cordatos não despontem.

Em 1972, Pierre Bourdieu definiu capital social como um dos quatro tipos de capital: social, económico, cultural e simbólico. Estes tipos de capital determinam as trajetórias sociais.

Estes acontecimentos têm um impacto muito negativo no já escasso capital social em Portugal, um tipo de capital que se pode resumir em três palavras: confiança entre as pessoas. Quanto maior for o capital social num país, maior a possibilidade de as pessoas, mesmo desconhecidas, se juntarem, desenvolverem negócios, estabelecerem parcerias de todos os tipos, e prosperarem.

No nível mais básico, capital social refere-se aos........

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