Contei-vos, há uma semana, sob o título “Somos bonecos sem cabeça”, que acabara de assistir, no tribunal, ao caso de um jovem pai que insultou uma médica quando tinha dois filhos doentes ao colo. Chamava-se Fábio. Disse que vos ia contar hoje os pormenores, já lá vamos.

Mas na semana passada também estávamos no rescaldo da demissão do Primeiro-Ministro e agora chegámos, por assim dizer, ao reaquecimento do caldo de incompetência do Ministério Público, que pelos vistos cozinhou uma sopa de pedra com poucas verduras e chouriços, com pedregulhos a mais e que ameaça azedar. A investigação que levou à demissão de António Costa, supostamente envolvido em suspeitas de corrupção, parece cada vez mais uma lista de equívocos e incompetências dolorosas para todos, trocas de nomes nas escutas, enganos, precipitações policiais, comunicados com acrescentos assassinos da Procuradora-Geral e, não fosse ter-se comprovado com os envelopes de dinheiro escondidos pelo chefe de gabinete que António Costa se quis rodear de péssimas companhias de trabalho e, tristemente para ele, para nós, para a própria ideia de amizade, de pobres-ricos amigos, a panela estritamente criminal do Ministério Público ainda se mostrava mais furada. Também eu dizia que se agravava o estado do Mundo em Gaza, mas nada está tão mal que não possa piorar e agora lembro o que disse uma pessoa que amei: quanto mais se bate no fundo, mais ele desce. Israel conseguiu rebentar com as suas reservas de razão e transformou-se num Estado historicamente, irremediavelmente assassino em massa de crianças, mandando às urtigas o nosso legítimo horror criado pelos massacres do Hamas. E vou, por isso, lembrar duas frases de Terêncio, sábio latino: “nada do que é humano me é estranho” e “justiça extrema é extrema injustiça”.

Vou agora finalmente ao Fábio, condenado por injúrias agravadas, ofensas a funcionário, é que nem a amnistia da visita do Papa a Portugal serve para o seu caso. Fábio, aos 23 anos, está desempregado, vive como electricista de biscates e caminha já para três filhos: o mais velho tem sete anos, o seguinte quatro e o terceiro deverá nascer em Dezembro. A história passou-se há dois anos na pandemia, numa sala de espera de um centro de saúde de Lisboa. A médica informou Fábio que, por ter chegado atrasado, já não ia consultar os filhos, havia agora outras pessoas à frente. E Cláudio pediu, pediu, mas não e não, e finalmente gritou à médica:

- Pensas que estás a falar com quem?! Sua vaca, sua puta, se fosses homem partia-te a cara. Deixei eu de ganhar 65 euros nas obras para vir para esta merda e não me atende os filhos?
Isto foi lido pela juíza. E pronto, crime. O que explicou Fábio?
- É verdade, é verdade, sim senhora.
- Está arrependido?
- Muito, mesmo muito. Foi no início da Covid e não era a minha médica de família. A minha advogada ficou de contactar a médica para eu lhe pedir desculpa, mas nunca conseguimos contactar a doutora.
Também no tribunal isso não ia dar agora, a médica não apareceu.
- Foi muito impróprio o que eu fiz. Mas o meu filho mais novo, que tinha menos de dois anos, nasceu com problemas de audição e estava com icterícia. Há seis meses que estávamos à espera, porque as consultas foram remarcadas três vezes. O meu filho estava primeiro e a minha filha a seguir, eu disse à médica que podia ver os dois juntos.
- Ela explicou-lhe que já não era possível?
- Sim, mas o miúdo também precisava de receber quatro vacinas e com isto teve de esperar outras quatro semanas!
Não podia ser, ai isso é que não podia ser. Uma criança meio-surda, com icterícia, um pai com duas crianças ao colo que se atrasou dez minutos, na pandemia. Quem nunca, alguma vez, ficava calado?

(O autor escreve segundo a antiga ortografia)

QOSHE - Quem nunca alguma vez?  - Rui Cardoso Martins
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Quem nunca alguma vez? 

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19.11.2023

Contei-vos, há uma semana, sob o título “Somos bonecos sem cabeça”, que acabara de assistir, no tribunal, ao caso de um jovem pai que insultou uma médica quando tinha dois filhos doentes ao colo. Chamava-se Fábio. Disse que vos ia contar hoje os pormenores, já lá vamos.

Mas na semana passada também estávamos no rescaldo da demissão do Primeiro-Ministro e agora chegámos, por assim dizer, ao reaquecimento do caldo de incompetência do Ministério Público, que pelos vistos cozinhou uma sopa de pedra com poucas verduras e chouriços, com pedregulhos a mais e que ameaça azedar. A investigação que levou à demissão de António Costa, supostamente envolvido em suspeitas de corrupção, parece cada vez mais uma lista de equívocos e incompetências dolorosas para todos, trocas de nomes nas escutas, enganos, precipitações policiais, comunicados com acrescentos assassinos da Procuradora-Geral e, não fosse ter-se comprovado com os envelopes de........

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