Há uma altura em que deixamos de ser crianças. O Marcos queria explicá-lo ao tio mas, como não se falam, é complicado. A própria mãe do tio, a avó do Marcos, não fala ao filho. Até finge que não o conhece, e depõe contra ele, é complicado. Um dia, o tio do Marcos determinou que as visitas, lá em casa, páram na sala, ninguém entra nos quartos. Ninguém, no caso, é: mulheres. Mas, como diz o Marcos:
- A casa é da minha avó. Eu pergunto por que é que ele acha que pode mandar naquela casa? É a minha casa também, eu é que sei se podem entrar no meu quarto ou não.
O tio do Marcos discorda e exprimiu a sua posição:
- Se for preciso mato um, mato dois, mato três.
Não é um lar feliz, acreditem. O Marcos acusou o tio de ameaças de morte e levou-o a tribunal. O tio era, no banco dos réus, um homem corroído pela desobediência, um comandante humilhado, rilhava os dentes, olhava o chão e o infinito da vingança. Tinha músculos nos braços e peúgas do Bugs Bunny nos pés. Falava no respeito que devemos aos mortos, às crianças e à moral. Marcos vive na casa desde os oito anos.
- Quando ele era pequeno, ficou à guarda do meu pai, porque a mãe estava no Brasil e não tinha maneira de tomar conta dele.
E lembrou, com voz de senhorio:
- Disse-lhe ‘já te tinha dito que as visitas aqui em casa é na sala, não é no quarto’. Eu tenho uma filha de dez anos. Não é isso que eu quero mostrar à minha filha.
Chegou a casa e viu a namorada do Marcos a sair da casa de banho.
- Ele não tinha nada que fazer aquilo, como não fazia no tempo em que o meu pai era vivo.
Não o ameaçou de morte, defendeu o tio, só lhe disse para sair do quarto e conversarem. A juíza tentou recriar o ambiente nos corredores. O tio de Marcos tem o dom de completar frases, com harmonia e ritmo.
- Então, começou a juíza, vivem na mesma casa e…
- … não nos falamos.
- Passam um pelo outro e…
- … e ninguém se chateia.
Ninguém se chateia: chama-se a polícia. O Marcos, que é magro como um atacador, barricou-se no quarto por volta das 17h30 e saiu duas horas depois. Segundo ele, o tio subia e descia escadas, partia loiça e e gritava-lhe que saísse para lhe partir o focinho e que o matava e
- e que fazia e que acontecia… Queria abrir a porta, a minha avó não deixou.
O sobrinho não namora a rapariga “há dois ou três dias”, são dez anos de amor. Naquele dia, estava apenas a jogar “playstation” e o tio desligou-lhe o quadro da luz três vezes, na fúria. O advogado do tio perguntou-lhe:
- Na altura em que o seu avô estava vivo, ia para o quarto com a sua namorada?
- Sim.
- Falava com ele?
- O meu avô falava pouco. Mas sabia, disse o Marcos.
Já vi coisas muito estranhas no tribunal. Mas nunca uma mãe a depor contra o filho. A velhota queria falar. Não era o medo de prejudicar o filho. Parecia, por assim dizer, ter receio de não o prejudicar.
- A moça era minha visita há muito tempo. O meu filho começou a embirrar, se estava farto de a conhecer, não era preciso aquilo! Começou a embirrar e não sei se o meu filho está aí se não.
- Está aí mesmo atrás de si, disse-lhe a procuradora.
Ela virou-se e foi como se descobrisse uma trança de alhos na despensa.
- Olha, nem o estava a reconhecer.
Confirmou as ameaças com os princípios irrefutáveis da lógica:
- Ele disse ‘tanto mato um, como dois, como três’. E eu: ‘eles são dois, se mata três também me mata a mim!’
A velha começou então a tremer.
- O meu filho degenerou, Deus me perdoe, ele não era assim! Não nos falamos, não sei se a diferença será minha, se dele!

*O autor escreve segundo a antiga ortografia

QOSHE - O filho tirano - Rui Cardoso Martins
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O filho tirano

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03.03.2024

Há uma altura em que deixamos de ser crianças. O Marcos queria explicá-lo ao tio mas, como não se falam, é complicado. A própria mãe do tio, a avó do Marcos, não fala ao filho. Até finge que não o conhece, e depõe contra ele, é complicado. Um dia, o tio do Marcos determinou que as visitas, lá em casa, páram na sala, ninguém entra nos quartos. Ninguém, no caso, é: mulheres. Mas, como diz o Marcos:
- A casa é da minha avó. Eu pergunto por que é que ele acha que pode mandar naquela casa? É a minha casa também, eu é que sei se podem entrar no meu quarto ou não.
O tio do Marcos discorda e exprimiu a sua posição:
- Se for preciso mato um, mato dois, mato três.
Não é um lar feliz, acreditem. O Marcos acusou o tio de ameaças de morte e levou-o a tribunal. O tio era, no banco dos réus, um homem corroído pela desobediência, um comandante humilhado, rilhava os dentes, olhava o chão e o infinito da........

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