Um fio de ouro, um crucifixo, dois amigos quebrados em pedacinhos para sempre. Ao fim de vários minutos, no tribunal, começámos a entender a profundidade do assunto: habitam, em Portugal, homens novos que têm com o ouro uma relação própria duma noiva do Minho, talvez pior do que a de uma avó cigana, tipos que carregam a vida toda pendurada ao pescoço.
A juíza tentava um acordo. Explicava ao ofendido, André, que o melhor para ele seria receber o dinheiro estipulado pelo avaliador oficial: o fio, objecto do crime, valia 40 euros. O réu pagava-lhe e caso encerrado. Mas quando André ouviu isto, tremeu. Não muito, o suficiente para fazer o barulho duma cigarra na folhagem distante, enervou as placas de ouro da pulseira, enrodilhadas num círculo dourado no pulso, que fizeram um tric, tric, tric.
- Eu só quero o fio, não quero mais nada!
- O senhor considera-se ressarcido com o fio cortado em 23 pedaços?
- Não, claro que não!
Ao lado de André estava Pedro, o acusado. Pegou numa tesoura e cortou o fio de André em 23 pedaços, estranha peripécia. Como André, Pedro trouxe vestida uma pulseira polida, que tinia nos movimentos do braço, era uma pulseira que se exprimia muito, embora baixinho, é a dignidade do ouro. Também tinha anéis e um fio de conchinhas amarelas que lhe emoldurava o pescoço fino, debruava-lhe o peito, que bem ficava ao jovem.
- Eu até lhe entreguei um crucifixo que nem era meu, era da minha mãe. O que é que posso fazer mais?, suspirava o réu.
Mas sabia-se culpado, obviamente o seu acto estava na lista das coisas horríveis que se podem fazer a alguém:
- Eu compreendo que ele tenha ficado zangado. Também não gostava que me fizessem isso a um fio novo meu...
Novo, ponto e vírgula. André fora claro. Primeiro, os 40 euros da avaliação eram um insulto. Não era pechisbeque, ouropel não usa.
- Era um fio de que eu não sei o valor... era herança do meu pai, que já o tinha recebido do avô, do bisavô, do trisavô...
Não lhe interrompessem o monólogo, teríamos chegado à Custódia de Belém de Gil Vicente e, mais atrás no tempo, ao cachucho lusitano que Viriato terá usado quando um traidor o envenenou pago pelos romanos, aliás não pago, Roma não paga a traidores.
- Não desiste mesmo da queixa?
- Com 40 euros, com certeza que não vou comprar nenhum. Com 40 euros só vou comprar um fecho! Só estou a pedir aquilo que é meu. Espero mais dois anos, se for preciso.
Estávamos a meditar, na assistência, sobre se estes dois homens não seriam, além de casmurros, um pouco fúteis, quando a juíza desistiu da desistência e começou a julgar. Todas as dúvidas se resolveram com simplicidade. Pedro estava a jogar à bola com o filho mais pequeno, um bebé, e apareceu o André e disse que o Pedro tinha batido na namorada dele.
- Ele vem e dá-me logo um murro, à frente do meu filho. E virei-me a ele, explicou o Pedro.
Acabaram na esquadra e aí pegaram-se de novo e já se estava numa situação sangrenta, de ouro sobre vermelho, quando André saiu. Um polícia descobriu um fio no chão e, vendo os adereços da personagem que restava, Pedro perguntou-lhe se era dele.
- Eu disse que sim e levei-o para casa.
- Mas porque é que o cortou?
- Foi a raiva, os nervos. Eu não queria o fio para nada.
Apropriação ilegítima e dano. Pedro encerrou o caso com chave daquele metal de que temos 400 toneladas, paradas no Banco de Portugal, para vender numa grande emergência.
- Eu e o André éramos amigos, desde miúdos...
Nem a amizade aguenta regras de ouro entre homens. Não bates na minha namorada, não me bates à frente do meu filho. E mais vale 24 quilates do que 23 cortes, é um facto, não chamem o avaliador.


*O autor escreve segundo a antiga ortografia

QOSHE - Juventude dourada - Rui Cardoso Martins
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Juventude dourada

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04.02.2024

Um fio de ouro, um crucifixo, dois amigos quebrados em pedacinhos para sempre. Ao fim de vários minutos, no tribunal, começámos a entender a profundidade do assunto: habitam, em Portugal, homens novos que têm com o ouro uma relação própria duma noiva do Minho, talvez pior do que a de uma avó cigana, tipos que carregam a vida toda pendurada ao pescoço.
A juíza tentava um acordo. Explicava ao ofendido, André, que o melhor para ele seria receber o dinheiro estipulado pelo avaliador oficial: o fio, objecto do crime, valia 40 euros. O réu pagava-lhe e caso encerrado. Mas quando André ouviu isto, tremeu. Não muito, o suficiente para fazer o barulho duma cigarra na folhagem distante, enervou as placas de ouro da pulseira, enrodilhadas num círculo dourado no pulso, que fizeram um tric, tric, tric.
- Eu só quero o fio, não quero mais nada!
- O senhor considera-se ressarcido com o fio cortado em 23 pedaços?
- Não, claro que não!........

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