- É amiga da arguida?

- … sim.

- Estão a passar uma má fase?

- Sim.

Mais complicado do que perder um amigo, é perder a metade de um amigo, acho eu. Isso acontece como nos grandes desastres ferroviários: vem o comboio e leva a parte do carro que parou nos carris; fica o resto, um bolo de ferros que não serve para nada mas ainda se pode aproveitar.

Serve para lembrar o desastre.

A juíza observava Teresa e via o seu esforço. Nunca mais falara com Catarina desde os acontecimentos, era a primeira vez que estavam juntas. Cinco anos sem se falarem. Eu não sei qual das duas se sentia pior no tribunal, só adivinhando, eram duas caras de borracha, duas máscaras a sorrir, a mergulhar na água do passado. Catarina era loira e pálida, Teresa tinha cabelo escuro e desapontado, cortado à rapaz.

- Quer desistir da queixa contra a sua prima?

- Acho que sim.

Catarina confessara tudo, abraçando os cotovelos como num frigorífico gigante. Cinco anos antes, vivia em casa da prima Teresa e do marido, que lhe tinham dado abrigo, e descobriu um livro de cheques em cima do armário. Desapareceu com o livro e passou vários cheques, segundo a acusação, “em proveito próprio e exclusivo, para ganhar vantagem económica à qual sabia não ter direito”.

- Quer dizer alguma coisa?

- Acho que não é necessário, respondeu Catarina.

Nessa altura drogava-se, agora está em tratamento e tem uma bebé de cinco meses, disse. Quando as primas saíram, deram duas voltas no átrio, uma sobre o eixo da outra, mas como se não se vissem, e também como se falassem para a parede. Depois o vento da tempestade partiu-se e cada uma foi arrastada para um lado diferente do tribunal. Teresa fumava com gestos quadrados. O desapontamento faz-nos rígidos. Disse-me que a tinha posto fora de casa.

- Desconfiei que tinha voltado à droga.

- Começaram a desaparecer coisas?

- Ela é que desapareceu muitos dias.

- Vai perdoar?

- Desde que ela não o volte a fazer.

II

Também vi Alexandre nesse dia, tinha uma tatuagem com um coração no braço. Um guarda trouxe-o na carrinha da penitenciária e ele estava como um cachorro que vai à rua, dava pulos, mostrava a língua e nem sentia a coleira. Alexandre estava feliz porque ia rever um amigo que não via há muito, um homem a quem roubou. Os seus olhos azuis eram como o céu, era muita a felicidade no tribunal. Ele trabalhava numa loja do amigo e em vez de entregar os cheques no Banco, levantava o dinheiro e gastava-o. Não é possível fazer isto toda a vida, também me parece.

- Isto é verdade?

- É sim, senhora doutora. Eu de facto fiz mal, eu abusei, ele confiou em mim…

A juíza mandou entrar o amigo. Tinha um bigode honesto, dentro do estilo português comerciante. Estava aflito, porque sentia a alegria de Alexandre, que o olhava nalguns ângulos como uma mulher apaixonada, de lado, e noutras vezes como se fosse o avô dele.

- Quer prosseguir com a queixa?

- Quero desistir. Eu sou amigo dele.

Então Alexandre não se ficou e quebrou as regras. Deu um salto para trás e abraçou o outro homem enquanto dizia:

- Eh pá, eh pá, eh pá, desculpa!

- Tá bem, resmungou o amigo.

- E a tua filha como é que vai?

- Vai bem.

E despediram-se e um voltou ao comércio e o outro à prisão. É tenebroso enganar um amigo, mas a noite é grande, é escura e existe todos os dias.

(O autor escreve segundo a antiga ortografia)

Nota:

Por lapso, foi publicada na edição de ontem uma crónica repetida. Fica aqui a correta com um pedido de desculpas aos leitores.

QOSHE - Duas traições insignificantes - Rui Cardoso Martins
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Duas traições insignificantes

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11.03.2024

- É amiga da arguida?

- … sim.

- Estão a passar uma má fase?

- Sim.

Mais complicado do que perder um amigo, é perder a metade de um amigo, acho eu. Isso acontece como nos grandes desastres ferroviários: vem o comboio e leva a parte do carro que parou nos carris; fica o resto, um bolo de ferros que não serve para nada mas ainda se pode aproveitar.

Serve para lembrar o desastre.

A juíza observava Teresa e via o seu esforço. Nunca mais falara com Catarina desde os acontecimentos, era a primeira vez que estavam juntas. Cinco anos sem se falarem. Eu não sei qual das duas se sentia pior no tribunal, só adivinhando, eram duas caras de borracha, duas máscaras a sorrir, a mergulhar na água do passado. Catarina era loira e pálida, Teresa tinha cabelo escuro e desapontado, cortado à rapaz.

- Quer desistir da queixa contra a sua prima?

- Acho que sim.

Catarina........

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