Do ponto de vista comercial, António podia ter calculado os efeitos de apontar a pistola à cabeça de um vizinho de 15 anos e gritar-lhe “tu merecias que eu te limpasse o sebo!” Os clientes de um café-snack tendem a confundir um comportamento avulso do proprietário com a qualidade real do estabelecimento.
- A intenção era... não era nenhuma. Eu sabia que não havia riscos para nenhum dos lados, a pistola era de alarme. Mas eu não ia pedir satisfações de mãos vazias.A cena de António causou um grande impacto inicial, mas o fim não convenceu ninguém, foi a ideia que ficou no bairro. E na Reboleira, como em todo o lado, o bom nome de um homem é tudo. Pouco depois, António passou o café para as mãos da filha. Ele diz que só se foi embora porque ficou farto, embora admita que começou a ficar farto nesse mesmo dia.Os dedos de António parecem restos de chouriço cozido guardados no frigorífico. Mas os dedos gordos não são os de um bandido, são de trabalhador. Era um homem normal, preocupado com a sua vida. Levantava-se cedo, deitava-se tarde. Mas forçaram-no a isso. Meteram-se com a família. E tudo mudou.
- ... e apontou-lhe a pistola à cabeça e disse que lhe limpava o sebo?, leu a juíza até ao fim.
- Tudo isso corresponde à verdade, respondeu António. Eu estava no meu local de trabalho e esse rapaz tinha batido no meu filho que tinha dez anos na altura - um pontapé no estômago - e foi lá a minha mulher e ele pontapeou-a também, atirou-a para a estrada, ela rebolou no alcatrão, deixou-a marcada das unhas dos pés à cabeça, tenho fotografias que mostram bem isso. Eu fui ao estabelecimento e trouxe a arma e apontei-lha à cara.
O maior mistério do caso foi o motivo da briga entre os dois rapazes. Ninguém se lembrará de como começou, nem sequer o rapaz ameaçado de morte por António. Ficou na categoria das “brigas de miúdos”. Há viragens históricas que nascem de insignificâncias. O rapaz entrou na sala. Os seus olhos grandes e claros não ajudaram António quando se descobriu na rua, rodeado de clientes, num movimento patético, a apontar-lhe uma pistola aos olhos. São ainda olhos de criança.
- Já não sei bem o que me disse. Ou que me dava um tiro, ou que me matava, contou o rapaz.
- E acreditou?
- Naquele momento a gente acredita.
- Sabia que a arma era de alarme?
- Só soube depois. Foi muito rápido.
- E agora a sério... acha que ele o queria matar?
- Não sei.
- Já o conhecia?
- De vista. Somos vizinhos.Não desistiu da queixa. Mas não foi ele quem chamou a polícia.- Tinha havido as confusões com o filho e depois a mãe dele começou a chamar-me nomes e também houve uma confusão.
- O que é que é ‘confusão’?
- A minha mãe estava no hospital, aliás veio a falecer lá, e ela chamava-me uma coisa e eu dizia ‘não me chame isso, não me chame isso!’ e dei-lhe um empurrão e caiu na estrada.E veio uma testemunha, uma senhora velha que assumiu ser a pessoa que mais detesta armas no mundo inteiro.- Ai Jasus, eu nem as posso ver! E o miúdo ficou assim... fazia a senhora, imitando uma pedra.António perdeu o gosto por aquela rua, passou o café-snack para a filha.Mas todos asseguram, por aquilo que sabem, embora não o vejam tanto como dantes, que ele é um homem pacífico.