A receita do dr. Paulo acertou no remédio mas enganou-se na dose. Ele pensou:
- Descarrega a tua raiva!
Mas descarregou demais, estendeu-se por muitas linhas. E quando chegou a casa, depois de abandonar o serviço a meio, o dr. Paulo estava ainda mais doente. Li o que ele escreveu no livro de ocorrências do centro clínico e transcrevo quase tudo. Se pensam numa letra de médico, com formigas a espernearem e a comerem-se umas às outras, esmagadas numa sola de sapato, enganam-se. A caligrafia do dr. Paulo era (pelo menos nessa noite) alta e esguia, um bosque de pinheiros bravos. Passeamos os olhos entre os troncos, vemos os ninhos redondos nos pontos dos “is”. O que o dr. Paulo escreveu, infelizmente, percebia-se:
“Acabo de abandonar o serviço! Não pactuo com vigaristas e seus acólitos. Fui roubado no correspondente a uma noite de serviço porque pura e simplesmente tinha ido comer qualquer coisa às 23h00!”
A nota prosseguia num tom de diário clandestino, uma novela política. Havia medo e asco nas letras elegantes do dr. Paulo, médico de consultas ao domicílio entre as oito da noite e as oito da manhã.
“Hoje, somos seguidos por um Fiat Punto - 02-84-IC - cujo condutor, passado algum tempo, entra nas instalações, não se identificando tão pouco, indagando o que fazíamos.”
Também dizia que a empresa dona do centro de diagnóstico clínico, tendo recebido o dinheiro de um contrato, se negava agora a pagar a quem “torna possível esse mesmo contrato”. Isto é, aos médicos como o dr. Paulo. Estava no fim a sua despedida magoada:
“Quem quiser que trabalhe para o centro de diagnóstico. São uma cambada de cínicos e vigaristas. É para esquecer estes três anos de serviço - até nunca mais.”
Assinou, saiu e meses depois entrava no tribunal, acusado de injúrias.
Não percebi se ele estava arrependido. Parecia recordar os três anos no centro como os piores da vida. O que ele disse, aliás, aponta para uma revolução na sociedade: era um médico que falava como um trabalhador explorado por um patrão desconhecido (”eu nunca conheci a cara desse senhor!”) Uma classe que não via dantes, o doutor-operário:
- Só queria descarregar a minha raiva, transmitir o que realmente sentíamos… mas que nunca se deve passar ao papel, se não pode acontecer isto. Aquilo que eu escrevi, no fundo, era o que se dizia, e chegava aos ouvidos do patrão. Só que nunca tinha aparecido assim escrito.
Médicos de todos os centros de diagnóstico, uni-vos! Às vezes, para poder acorrer às consultas, tinha que pôr a gasolina do próprio bolso. E se ia comer uma sandes a correr, era perseguido, se ligava a televisão à espera das chamadas, denunciavam-no.… Nessa noite de humilhação, quando soube que não ia ser pago, fez o manifesto. “A quente”, admitiu.
- Foi tão a quente, podia ter feito de outra maneira. Quando cheguei a casa arrependi-me, pensei voltar para trás. Mas já não dava. Não se podem arrancar as folhas daquele livro.
Falta um dado importante no diagnóstico do dr. Paulo: as condições que o levaram ao estado psicossomático descrito. Naquela tarde, o tribunal tinha decretado que ele passava a pagar uma pensão de alimentos à sua segunda mulher. Era a terceira pensão, a juntar às que já pagava à mulher e aos filhos do primeiro casamento.
- É, uma pessoa faz das tripas coração para ir aguentando, suspirou.
Mas a continuar assim nem grandes tripas, nem grande coração (e eu não sou médico).

QOSHE - Até nunca mais - Rui Cardoso Martins
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Até nunca mais

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17.03.2024

A receita do dr. Paulo acertou no remédio mas enganou-se na dose. Ele pensou:
- Descarrega a tua raiva!
Mas descarregou demais, estendeu-se por muitas linhas. E quando chegou a casa, depois de abandonar o serviço a meio, o dr. Paulo estava ainda mais doente. Li o que ele escreveu no livro de ocorrências do centro clínico e transcrevo quase tudo. Se pensam numa letra de médico, com formigas a espernearem e a comerem-se umas às outras, esmagadas numa sola de sapato, enganam-se. A caligrafia do dr. Paulo era (pelo menos nessa noite) alta e esguia, um bosque de pinheiros bravos. Passeamos os olhos entre os troncos, vemos os ninhos redondos nos pontos dos “is”. O que o dr. Paulo escreveu, infelizmente, percebia-se:
“Acabo de abandonar o serviço! Não pactuo com vigaristas e seus acólitos. Fui roubado no correspondente a uma noite de serviço porque pura e........

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