Não se pode dizer que ele fosse mau empregado, mas também não era grande empregado.

É a opinião da ex-colega de Tito e também não se pode dizer que seja grande opinião sobre uma pessoa. Foi a ex-colega, no entanto, quem explicou a origem da enigmática batalha do restaurante. Murros, mordidelas e pontapés nos testículos foram trocados entre crianças de colo e patrões, é o que consta sobre esse dia bizarro, hão-de concordar.

- Depois que me senti sem a criança, é claro que me defendi, porque ele chegou a atingir a criança!, disse Tito.

Era um homem nervoso, quase a desafinar. Exemplificava os factos com um movimento rotativo das mãos, constante do princípio ao fim da frase, a bater claras de ovo.

- Eu disse-lhe ‘senhor Fernando, eu vim aqui não para arranjar problemas mas apenas para receber o que me é devido.’ E ele disse logo ‘meu filho da puta, eu esfolo-te vivo!’ E atacou-me.

- Não houve ameaças suas?

- Ameaças não houve. Ele agora inventa o que quiser.

O senhor Fernando, se não inventou, disse uma coisa difícil de acreditar, ou melhor, em que o tribunal não acreditou. Mas a primeira parte correu-lhe bem. Segundo ele, por motivos que lhe eram alheios, e num dia em que não se encontrava no restaurante, o funcionário Tito começou por se desentender com uma colega, e depois com a esposa e sócia de Fernando.

Depois, “de uma forma pouco esclarecedora”, foi-se embora, demitiu-se, anunciando que voltaria para receber o salário. E que dias depois Tito voltou de facto, mas não foi possível conversar com ele, pois começou logo a insultá-lo, enquanto a mulher de Tito, com um bebé ao colo, que usava como escudo de protecção, chamava “vaca, coscuvilheira e regateira” à mulher do patrão. Portanto, ia chamar a PSP, disse Fernando, quando a mulher de Tito fez uma coisa que não lembra ao diabo, aliás lembra:

tendo o filho nos braços e, portanto, as duas pernas livres, usou uma delas como apoio e a outra como arremesso, e deu um pontapé nos testículos do senhor Fernando, “fazendo-o contorcer e cair no chão com dores”, explicando neste processo:

- Aproveita agora, Tito.

Ele aproveitou, disse Fernando, com pontapés na cabeça e no resto do corpo. A procuradora da República não achou convincente a parte do escudo humano bebé. Achou, aliás, confirmada a acusação: que o senhor Fernando é que desatou logo a bater no ex-empregado, e na mulher e eventualmente no bebé, por simpatia. A juíza concordou, apesar de vir na sequência de uma discussão “que lhe diminui em parte a culpa”.

Mas onde é que esta gente foi buscar toda esta energia? A ex-colega de Tito é que sabe.

- A saída dele do restaurante foi uma coisa sem jeito nenhum. A patroa pediu-lhe para pôr o vinho que sobrava das refeições no comer.

Mas Tito agarrou num jarro e disse que ia usar no comer aquele vinho, porque o outro já o tinha bebido.

- Mas depois foi ao frigorífico e tirou de lá a garrafa, porque afinal sobrara. E a patroa disse-lhe: ‘Realmente parece ser preciso fazer um desenho para o senhor perceber alguma coisa.’

E Tito ficou ofendido, tirou a camisola, disse coisas sem nexo e demitiu-se. Agora sabemos o que é um empregado que não é mau mas também não é grande empregado.

O autor escreve segundo a antiga ortografia

QOSHE - Aproveita agora - Rui Cardoso Martins
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24.03.2024

Não se pode dizer que ele fosse mau empregado, mas também não era grande empregado.

É a opinião da ex-colega de Tito e também não se pode dizer que seja grande opinião sobre uma pessoa. Foi a ex-colega, no entanto, quem explicou a origem da enigmática batalha do restaurante. Murros, mordidelas e pontapés nos testículos foram trocados entre crianças de colo e patrões, é o que consta sobre esse dia bizarro, hão-de concordar.

- Depois que me senti sem a criança, é claro que me defendi, porque ele chegou a atingir a criança!, disse Tito.

Era um homem nervoso, quase a desafinar. Exemplificava os factos com um movimento rotativo das mãos, constante do princípio ao fim da frase, a bater claras de ovo.

- Eu disse-lhe ‘senhor Fernando, eu vim aqui não para arranjar problemas mas apenas para receber o que me........

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