Seis de outubro de dois mil e dezanove. André Ventura é eleito, à última, deputado único pelo recém-criado Partido Chega, a par do Livre (versão Joacine) e com menos cinco mil votos do que a Iniciativa Liberal, no círculo eleitoral de Lisboa. Nessa noite, em tom profético, disse a seguinte frase: “daqui a oito anos seremos o maior partido de Portugal”. Rimo-nos todos. No domingo, o líder do Chega podia ter citado Nigel Farage: “You are not laughing at me now, are you?”.

A ascensão da direita radical é um fenómeno político recente e sem respostas fechadas sobre qual a melhor abordagem dos partidos moderados na defesa da democracia liberal. No contexto da União Europeia, é possível identificar diferentes formas de lidar com este desafio. Em Espanha, o PP rejeita qualquer aliança com o VOX no plano nacional, mas coliga-se e celebra acordos de governação em várias regiões autónomas. Em Itália, a Lega de Salvini integrou dois governos, tendo saído fragilizada do segundo, que conduziu à eleição de Meloni. Em França, o único país que convive com esta realidade há décadas, o modelo presidencialista tem permitido que todos se unam contra Le Pen nas segundas voltas, sem que a Rassemblement National perca força. Chegou a nossa vez.

A estratégia dos partidos portugueses tem sido a das “linhas vermelhas”. No fundo, resume-se a traçar uma só linha, meramente formal, no sentido de recusar tudo o que seja apresentado pelo Chega. André Ventura tem sabido aproveitar este convite à vitimização, explorando como ninguém a sua exclusão no plano legislativo, que o desresponsabiliza de qualquer resultado. É tempo de repensar o teor destas linhas, que devem existir, mas ser de substância, implacáveis com quaisquer propostas que representem um retrocesso civilizacional ou ameacem a nossa matriz humanista. No resto, é preciso falar e, assim, responsabilizar esta direita aos olhos do eleitorado.

Neste sentido, combater o Chega não significa excluir, implica esvaziar. Não se defende a democracia liberal marginalizando quarenta e oito deputados, que representam mais de um milhão e cem mil eleitores. Antes de mais, importa compreender as razões que levaram tantos eleitores a votar numa solução extremada e inconsequente. Depois, será necessário recuperar a sua confiança, atendendo aos problemas e apresentando políticas públicas que os resolvam eficazmente. Estou convencido que envolver e responsabilizar o Chega - na estrita medida do necessário e apenas no que for razoável discutir -, enfraquecerá mais o seu projeto do que o tempo de antena concedido em ataques, ridicularização e desprezo pelos “deploráveis”.

Se não for assim, André Ventura terá legitimidade para reafirmar que só não existiu uma solução de governabilidade estável à direita por culpa do PSD e de Luís Montenegro. Acresce que, contrariamente ao que sucedeu com o PRD em 1987 e com os partidos à esquerda do PS em 2022, não é líquido que o eleitorado do Chega penalize o partido caso derrube o Governo. E, na eventualidade remota de ser Pedro Nuno Santos a viabilizar os próximos Orçamentos do Estado, André Ventura seria percecionado como o líder de facto da oposição, com todas as consequências inerentes em futuras eleições.

O “não é não” pode e deve manter-se no que respeita à formação do governo e à não cedência a propostas políticas radicais, mas tem de ser compatível com negociações parlamentares que assegurem a estabilidade governativa, garantam a alternância de poder, respeitem os eleitores e responsabilizem o Chega enquanto parte do sistema político.

QOSHE - Ignorar não Chega - Rafael Corte Real
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Ignorar não Chega

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18.03.2024

Seis de outubro de dois mil e dezanove. André Ventura é eleito, à última, deputado único pelo recém-criado Partido Chega, a par do Livre (versão Joacine) e com menos cinco mil votos do que a Iniciativa Liberal, no círculo eleitoral de Lisboa. Nessa noite, em tom profético, disse a seguinte frase: “daqui a oito anos seremos o maior partido de Portugal”. Rimo-nos todos. No domingo, o líder do Chega podia ter citado Nigel Farage: “You are not laughing at me now, are you?”.

A ascensão da direita radical é um fenómeno político recente e sem respostas fechadas sobre qual a melhor abordagem dos partidos moderados na defesa da democracia liberal. No contexto da União Europeia, é possível identificar diferentes formas de lidar com este desafio. Em Espanha, o PP rejeita qualquer aliança com o VOX no plano nacional, mas coliga-se e celebra acordos de governação em várias regiões........

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