No quadro do sistema semipresidencial que estabelece – no qual a lógica da dupla responsabilidade política é central – a Constituição portuguesa impõe o envolvimento do Presidente da República e da Assembleia da República no processo de entrada em funções de um novo Governo.

Ao primeiro, confere o poder de nomeação do Primeiro-Ministro (e, sob proposta deste, dos restantes membros), tendo em conta os resultados eleitorais. À segunda, impõe a apreciação do respectivo programa, no prazo de dez dias contados da tomada de posse.

Há, nesta segunda dimensão, alguma originalidade, uma vez que a lei fundamental não obriga a que o programa do Governo seja aprovado. Nem sequer votado, aliás, já que só o será se alguém – Governo ou oposição – tomar essa iniciativa, aquele através da apresentação de um voto de confiança, esta por via de uma moção de rejeição.

Nessa medida, o Governo pode entrar na plenitude de funções – visto que, até aí, estamos perante aquilo que se designa por governo de gestão -, de forma automática, no momento em que o debate do programa termina. Algo que sucedeu, de resto, com 6 Governos Constitucionais – o 1.º, liderado por Mário Soares, em 1976, o 13.º, por António Guterres, em 1999, o 17.º e o 18.º, ambos por José Sócrates, em 2005 e 2009, o 19.º, por Pedro Passos Coelho, em 2011 e o 22.º, por António Costa, em 2019).

A originalidade, porém, não se fica por aqui. E isto porque, segundo a Constituição, a rejeição do programa provoca a queda do Governo, mas só se for atingido o limiar da maioria absoluta dos Deputados em efectividade, isto é, 116.

Ou seja: para assumir o seu estatuto em pleno, um Governo não necessita de beneficiar do apoio de uma maioria parlamentar absoluta. Basta-lhe garantir que não tem uma maioria desse teor contra ele. Algo que, no entendimento da doutrina jusconstitucionalista, significa que a lei fundamental não só admite, como até incentiva, a existência de executivos minoritários.

A prática política confirmou, aliás, essa ideia. Até Novembro de 2015 - altura em que a geringonça provocou a demissão do segundo governo liderado por Pedro Passos Coelho -, sempre que um partido, ou uma coligação, venceram as eleições com maioria relativa, foi-lhes permitido governar, mesmo nos casos em que alguma força partidária propôs, sem sucesso, a rejeição do programa. E o mesmo sucedeu em 2019, com o segundo governo de António Costa.

A prática em causa é, a meu ver, muito correcta. Porque um governo minoritário tem, política e juridicamente, uma legitimidade igual à de qualquer outro. E é até preferível a um governo suportado numa maioria absoluta contranatura ou que resulte de uma soma aritmética de apoios cozinhada nas costas dos eleitores.

No que toca às regiões autónomas, a arquitectura constitucional do sistema de governo é distinta. Aí, a dupla dependência é substituída pela responsabilidade política do Governo regional, apenas, perante a Assembleia Legislativa, solução típica dos modelos parlamentares.

A lei fundamental é omissa quanto à questão da necessidade de aprovação do seu programa. Mas essa lacuna é preenchida pelos Estatutos Político-Administrativos regionais que, em lógica consequência da natureza do sistema, obrigam, não só à votação, mas à aprovação do programa. Algo que, a não acontecer, gera a automática queda do Executivo.

Estas considerações (porventura demasiado longas) são justificadas pelo que sucedeu, no passado domingo, nas eleições açorianas. O sufrágio foi claro: a AD ganhou, embora com maioria relativa, o Chega melhorou substantivamente o seu resultado, passando de 2 para 5 Deputados, o Bloco de Esquerda só conseguiu manter 1 dos 2 Deputados que detinha.

Mas o grande derrotado foi, em toda a linha, o PS. Trabalhou, objectivamente, para a criação de um clima de instabilidade, contribuindo, de forma activa, para a não viabilização do orçamento regional, que esteve na base da crise que conduziu às eleições, não hesitando, para isso, em colocar-se do mesmo lado do Chega. Pela primeira vez em 31 anos, não foi a força política mais votada. Viu reduzida em 2 Deputados a sua representação parlamentar. E errou, por completo, na linha estratégica que escolheu para a campanha e que assentou na ideia de que a sua vitória era a única forma de evitar uma solução governativa assente num (suposto) entendimento entre a AD e o Chega.

Na própria noite eleitoral, José Manuel Bolieiro declarou - e muito bem – que governará com a maioria relativa que o povo lhe concedeu. Só não o fará, portanto, se uma coligação negativa, de que o PS e o Chega terão, obrigatoriamente, de fazer parte, o impedir.

Para quem estiver de boa-fé, esfumou-se assim, e de forma definitiva, o “fantasma” do Chega, que tantos têm irresponsavelmente invocado, tanto nos Açores como no País, com o fito de desencorajar potenciais votantes no PSD (e na AD) e de engrossar o apoio ao PS. Embora, inexplicavelmente, continuem a existir, no espaço público, jornalistas e comentadores a insistir num assunto que deixou de o ser.

Para o PS chegou, finalmente, o momento do “teste do algodão”. Está disponível para permitir que um governo minoritário governe nos Açores, respeitando a vontade dos eleitores? Ou prefere apostar no “quanto pior, melhor”, ao lado do Chega?

E, quando digo PS, não estou a pensar, apenas, em Vasco Cordeiro. Refiro-me, também, a Pedro Nuno Santos. Porque, agora, poderá eventualmente pretender escudar-se na autonomia estatutária do PS açoriano. Mas, se cenário similar vier a emergir em 10 de Março, temos todos o direito de saber, de antemão, de que lado se colocará ele.

QOSHE - Açores: o "teste do algodão" - José Matos Correia
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Açores: o "teste do algodão"

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07.02.2024

No quadro do sistema semipresidencial que estabelece – no qual a lógica da dupla responsabilidade política é central – a Constituição portuguesa impõe o envolvimento do Presidente da República e da Assembleia da República no processo de entrada em funções de um novo Governo.

Ao primeiro, confere o poder de nomeação do Primeiro-Ministro (e, sob proposta deste, dos restantes membros), tendo em conta os resultados eleitorais. À segunda, impõe a apreciação do respectivo programa, no prazo de dez dias contados da tomada de posse.

Há, nesta segunda dimensão, alguma originalidade, uma vez que a lei fundamental não obriga a que o programa do Governo seja aprovado. Nem sequer votado, aliás, já que só o será se alguém – Governo ou oposição – tomar essa iniciativa, aquele através da apresentação de um voto de confiança, esta por via de uma moção de rejeição.

Nessa medida, o Governo pode entrar na plenitude de funções – visto que, até aí, estamos perante aquilo que se designa por governo de gestão -, de forma automática, no momento em que o debate do programa termina. Algo que sucedeu, de resto, com 6 Governos Constitucionais – o 1.º, liderado por Mário Soares, em 1976, o 13.º, por António Guterres, em 1999, o 17.º e o 18.º, ambos por José Sócrates, em 2005 e 2009, o 19.º, por Pedro Passos Coelho, em 2011 e o 22.º, por António Costa, em 2019).

A originalidade, porém,........

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