Iniciou-se ontem uma nova legislatura da Assembleia da República – a XVI. E, tendo em conta os resultados eleitorais de 10 de Março, e os seus reflexos em termos de representação parlamentar, afigura-se óbvio que será a mais desafiante, pelo menos, em quase três décadas. E, a esse propósito, gostaria de aqui deixar duas reflexões: a primeira relativamente ao método de governação e a segunda acerca das (possíveis) consequências sobre o funcionamento do sistema de governo.

Na sequência, creio, de uma notícia publicada aqui no Expresso, tem estado presente no espaço público a ideia de que, face à maioria muito limitada de que dispõe, o Governo se prepara para governar por decreto (leia-se, por decreto-lei), em ordem a evitar os obstáculos às suas decisões que o Parlamento pode colocar, em função da geração, aí, de maiorias negativas.

Ora, a este propósito, convém começar por esclarecer que, entre nós, o Governo dispõe de amplas competências legislativas próprias, muito para além, aliás, daquilo que constitui regra nos países democráticos com que nos podemos comparar.

De facto, a Constituição coloca na órbita da Assembleia da República os domínios legislativos mais importantes, seja sob a forma de reserva absoluta (isto é, matérias em que só a ela cabe legislar), seja na modalidade de reserva relativa (ou seja, situações em pode fazer leis ou permitir, através de de autorizações legislativas, que o Executivo aprove decretos-leis, no quadro, evidentemente, das limitações que aquela tem de lhe impor).

Fora disso, porém, Parlamento e Governo estão em pé de igualdade em termos legislativos (é aquilo que tecnicamente se designa por competência legislativa concorrencial), razão pela qual lei e decreto-lei têm idêntico valor. E daí decorre que se podem livremente revogar, de acordo com a regra geral segundo a qual “lei posterior derroga a lei anterior”.

Dito de outra forma: nessa área (que é, de longe, a numericamente mais relevante, embora, sublinhe-se, não a qualitativamente) uma lei da Assembleia da República pode substituir ou modificar um decreto-lei do Governo, mas o inverso é, igualmente, possível (e, na prática, sucede).

A nossa lei fundamental consagra, por outro lado, o instituto da apreciação parlamentar de decretos-leis, permitindo que a Assembleia da República, a requerimento de dez Deputados, aprecie quase todos os decretos-leis (com excepção daqueles que resultem do exercício da competência legislativa do Governo, que se resumem, contudo, aos que respeitem à sua própria organização e funcionamento).

Nessa apreciação, o Parlamento tem três caminhos possíveis: ou a iniciativa não tem sucesso e o diploma fica com a mesma redacção que tinha, ou, pura e simplesmente, determina a cessação da sua vigência ou, ainda, opta por lhe introduzir alterações.

Tudo visto, portanto, o facto de o Governo não dispor de maioria absoluta tem duas consequências: não poder fazer aprovar, apenas por força dela, as leis da competência reservada da Assembleia da República de que careça para a sua actuação; não conseguir evitar que esta modifique, ou até, ponha fim à vigência dos diplomas legais por si aprovados.

Nada, contudo, que não se tenha passado com outros Governos minoritários, até porque, no essencial, a arquitectura constitucional atinente a estas matérias se mantém desde o início da Constituição. Tudo dependerá, assim, da capacidade de diálogo do Governo e da predisposição para o mesmo por parte das oposições, no quadro da defesa do interesse nacional.

Passemos, então, à segunda questão que referi e que se prende com o possível reflexo do novo quadro parlamentar no sistema de governo semipresidencial.

No contexto das dinâmicas políticas que esse sistema pode gerar, desde 1987 que o nosso tem sido caracterizado por aquilo que doutrinariamente é designado por “trialismo governamental”.

Pretende-se, assim, descrever uma situação em que o Governo prevalece sobre o Parlamento (e, naquele, a figura do Primeiro-Ministro) e os poderes presidenciais são mais limitados no seu exercício. E que se diferencia, claramente, do “trialismo parlamentar”, em que o predomínio é do Parlamento e do “trialismo presidencial”, em que a centralidade é assumida pelo Presidente da República, em suporte do Governo, e em que a Assembleia da República tem uma intervenção de controlo político mais limitada, por força da “ameaça” da sua dissolução a qualquer momento.

Ora, é aqui que a fragmentação política pode, em tese, introduzir mudanças significativas na prática que tem vindo a ser seguida desde há muito, deslocando progressivamente a sede do poder para o Parlamento.

Só que isso tem, habitualmente, um risco óbvio – o da instabilidade política (e de políticas) -, que é precisamente o inverso daquilo de que o País precisa, num momento especialmente delicado, tanto interna quanto externamente. Um risco que é acrescido, ainda, pela natureza daquela fragmentação, que deu origem a um cenário muito complexo, com a presença, em número significativo, de forças radicais e o concomitante enfraquecimento da soma da representação dos partidos ao centro do espectro político.

Dizer que o contexto é desafiante e o caminho estreito só pecaria, assim, por defeito. E pensar que há quem defenda reformas do sistema eleitoral no sentido de uma maior proporcionalidade, da consequente atomização partidária acrescida e do inevitável incremento da ingovernabilidade! Mas isso é tema que ficará para outra altura.

Post scriptum: Já depois do presente texto ter sido elaborado, assistimos ao que se passou na Assembleia da República a propósito do processo de eleição do seu novo Presidente. E os piores receios confirmaram-se, assim, desde o primeiro momento. Porque o radicalismo e o populismo, para além de tudo o resto, não têm palavra. Dão o dito por não dito como quem muda de camisa.

José Matos Correia escreve de acordo com a antiga ortografia.

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A nova legislatura

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27.03.2024

Iniciou-se ontem uma nova legislatura da Assembleia da República – a XVI. E, tendo em conta os resultados eleitorais de 10 de Março, e os seus reflexos em termos de representação parlamentar, afigura-se óbvio que será a mais desafiante, pelo menos, em quase três décadas. E, a esse propósito, gostaria de aqui deixar duas reflexões: a primeira relativamente ao método de governação e a segunda acerca das (possíveis) consequências sobre o funcionamento do sistema de governo.

Na sequência, creio, de uma notícia publicada aqui no Expresso, tem estado presente no espaço público a ideia de que, face à maioria muito limitada de que dispõe, o Governo se prepara para governar por decreto (leia-se, por decreto-lei), em ordem a evitar os obstáculos às suas decisões que o Parlamento pode colocar, em função da geração, aí, de maiorias negativas.

Ora, a este propósito, convém começar por esclarecer que, entre nós, o Governo dispõe de amplas competências legislativas próprias, muito para além, aliás, daquilo que constitui regra nos países democráticos com que nos podemos comparar.

De facto, a Constituição coloca na órbita da Assembleia da República os domínios legislativos mais importantes, seja sob a forma de reserva absoluta (isto é, matérias em que só a ela cabe legislar), seja na modalidade de reserva relativa (ou seja, situações em pode fazer leis ou permitir, através de de autorizações legislativas, que o Executivo aprove decretos-leis, no quadro,........

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