Depois de uma extensa e atípica campanha eleitoral, chegámos à tão aguardada noite de gala com expectativa de conhecer os impactos da bomba atómica nesta longa-metragem de métricas propagandísticas, sem perceber se o espetáculo da política virou política de espetáculo, com muitos adjetivos e poucos objetivos.

Foi uma noite de suspense em que a democracia não ficou suspensa, sendo que o entretenimento poderá também ter trazido mais audiência. A Abstenção diminuiu significativamente e é também a prova de que meios de comunicação “clássicos e novíssimos” souberam chegar melhor aos eleitores, reconhecendo o público e a academia a importância das várias plataformas que comunicam de forma simples e o peso das que comunicam de forma simplista.

Vamos ter de esperar pela contabilização dos votos dos círculos no estrangeiro, na Europa e Fora da Europa, que têm taxas de abstenção, por norma e por um procedimento eleitoral bastante menos acessível e mais burocrático, muito mais elevadas. Não obstante, já podemos afirmar que a abstenção no território nacional diminuiu 8,27 pontos percentuais (p.p.), passando de 42,04% em 2022 para 33,77%, com mais 750.584 cidadãos a exercer o seu direito de voto.

Os flashes da noite deram foco, brilho e cor a uma vitória laranja, mas mais que uma passadeira estendida que deixa de ser vermelha, é um tirar de tapete e de quatro dezenas de rosas num ano de cinco dezenas de cravos. Mais que uma vitória da Aliança Democrática, que no início da noite se esperava mais clara, é uma pesada derrota do Partido Socialista e do seu cabeça de cartaz, que não apresentou um guião de ação apto a conter o cansaço de quem queria mudar um canal que já não sentia sintonizado.

De facto, os 486.700 votos perdidos pelo Partido Socialista não foram canalizados para a Aliança Democrática. Na prática, os partidos desta coligação não crescem muito em relação a 2022, somando apenas mais 146.225 votos, e em termos de percentagem de votos até decresceram 1,4 pontos percentuais. No que diz respeito a mandatos, o PSD pode vir a não ter uma bancada parlamentar maior, mantendo os 77 deputados, se não eleger nos círculos da emigração, pois essa concentração de votos da coligação pré-eleitoral, que permite a eleição de mais mandatos, tem de ter em conta que dois dos deputados eleitos estarão numa bancada própria, do CDS-PP.

A imprensa estrangeira deu destaque ao verdadeiro premiado da noite. O Chega é o partido que verdadeiramente muda estas eleições e André Ventura a estrela de um típico filme de domingo desprezado pela crítica, mas um fenómeno de audiências. Rotular esta obra comercial como fascismo é um discurso simplista, que atribui um diagnóstico pouco preciso e um atestado incorreto a mais de um milhão de concidadãos.

O Partido Chega quadruplicou o tamanho da sua bancada parlamentar, parecendo captar eleitorado de todos os campos, com um discurso anti-elites, securitário, que consegue apresentar simultaneamente medidas socialistas, liberais e conservadoras sem preocupações de harmonização. Esse posicionamento transversal, e a adaptação constante à perceção da vontade dos eleitores, que muitas vezes correspondem a conceções populistas e às vezes até demagogas, permitiu o sobressalto de alguns abstencionistas, que abandonaram uma reivindicação resignada, mas não se resume a este fator.

Além da mudança de paradigma de um sistema tendencialmente bipartidário, tornou-se notório, uma vez mais, que os eleitores não podem ser colocados em caixas ideológicas dividas por um espectro político desatualizado e de bolha. Apesar de as transições de eleitores não serem sempre diretas, o Chega passa de ser o pretexto de um discurso que permitiu uma maioria ao Partido Socialista em 2022, para infligir uma pesada derrota ao próprio Partido Socialista e não possibilitar uma maioria de esquerda.

Essa esquerda já não maioritária e sem o dístico de protesto, que pautou as últimas décadas, está a perder expressão, não conseguindo comprovar que o desaire de alguns partidos em 2022 se justificava apenas pelo voto útil. No entanto, o Livre, apresentando-se como uma esquerda verde, europeísta e mais moderna, conseguiu crescer e construir um grupo parlamentar, permitindo-lhe diversificar o seu trabalho parlamentar.

No que concerne ao PAN, conseguiu travar uma tendência decrescente que o poderia afastar da Assembleia da República e condicionaria em muito a sua presença no espaço público. Por seu turno, a Iniciativa Liberal mantendo o número de mandatos, conseguiu resistir ao apelo ao voto útil, ao desgaste de já não ser um partido recente e a uma mudança de liderança que não colhe um reconhecimento tão grande da sociedade. O seu peso objetivamente não muito expressivo pode não possibilitar a sua presença e influência significativa num executivo, apesar dos entendimentos anunciados com o PSD.

Por fim, não assistimos à eleição de um novo partido, mas o resultado do ADN é assinalável, apesar de questionável. O lapso e semelhança com a terminologia da AD podem justificar estes valores e ter influenciado os resultados inconsistentes das sondagens à boca das urnas, porém o próprio reposicionamento do partido ao longo dos últimos anos, o seu discurso circunscrito, conspirativo e antissistema, bem como o apoio de alguns grupos religiosos e de outra índole, e ainda a sua menção por outros partidos e por meios de comunicação podem completar o motivo deste evento invulgar.

Independentemente do partido em causa, causa inevitavelmente perplexão um partido com 100 mil votos não alcançar representação parlamentar. Os 673.382 votos ditos desperdiçados, valor que será superior depois de apurados os círculos da Europa e Fora da Europa, devem levar-nos a uma reforma do sistema eleitoral que inclua um círculo de compensação nacional e não a uma mera lamúria perante um triste fado que se conforme sucessivamente com um sistema descompensado.

QOSHE - O povo falou e o país escutou? O que nos dizem os resultados eleitorais - Francisco Cordeiro De Araújo
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O povo falou e o país escutou? O que nos dizem os resultados eleitorais

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11.03.2024

Depois de uma extensa e atípica campanha eleitoral, chegámos à tão aguardada noite de gala com expectativa de conhecer os impactos da bomba atómica nesta longa-metragem de métricas propagandísticas, sem perceber se o espetáculo da política virou política de espetáculo, com muitos adjetivos e poucos objetivos.

Foi uma noite de suspense em que a democracia não ficou suspensa, sendo que o entretenimento poderá também ter trazido mais audiência. A Abstenção diminuiu significativamente e é também a prova de que meios de comunicação “clássicos e novíssimos” souberam chegar melhor aos eleitores, reconhecendo o público e a academia a importância das várias plataformas que comunicam de forma simples e o peso das que comunicam de forma simplista.

Vamos ter de esperar pela contabilização dos votos dos círculos no estrangeiro, na Europa e Fora da Europa, que têm taxas de abstenção, por norma e por um procedimento eleitoral bastante menos acessível e mais burocrático, muito mais elevadas. Não obstante, já podemos afirmar que a abstenção no território nacional diminuiu 8,27 pontos percentuais (p.p.), passando de 42,04% em 2022 para 33,77%, com mais 750.584 cidadãos a exercer o seu direito de voto.

Os flashes da noite deram foco, brilho e cor a uma vitória laranja, mas mais que uma passadeira estendida que deixa de ser vermelha, é um tirar de tapete e de quatro dezenas de rosas num ano de cinco dezenas de cravos. Mais que uma vitória da Aliança........

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