Estamos a horas de conhecer o desenlace de três importantes casos sobre alterações climáticas no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) e um deles envolve um grupo de jovens portugueses. Mais do que grandes euforias ou frustrações, precisamos de compreender o que está realmente em causa e quais as possíveis consequências destas decisões, sem espaço para visões maniqueístas.

Em primeiro lugar, o TEDH não é um tribunal da União Europeia (UE), pertence ao Conselho da Europa, que também não se deve confundir com o Conselho Europeu e com o Conselho da União Europeia, essas sim duas instituições da UE. O Conselho da Europa é uma organização internacional mais antiga, que celebra 75 anos e conta com 46 Estados europeus, ao invés dos 27 da UE, estando focada em três pilares: Democracia, Estado de Direito e Direitos Humanos.

No campo dos Direitos Humanos, os Estados estão vinculados ao respeito da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) e sujeitos à jurisdição do TEDH. Os 46 juízes do Tribunal apreciam, sobretudo, queixas de pessoas contra Estados sobre violações de direitos consagrados na CEDH.

Ao longo da sua história, o Tribunal sedeado em Estrasburgo já lidou com vários casos ambientais. Porém, é a primeira vez que aprecia casos climáticos, que têm uma natureza bastante mais complexa e que colocam desafios jurídicos significativos, cuja resposta ou omissão da mesma podem definir a futura atuação do Tribunal. Também por esse fundamento a discussão destes casos foi agrupada e tida como prioritária.

Estes três casos são algo semelhantes, porém possuem elementos distintivos.

1.

O caso Carême foi impulsionado por um cidadão francês, que é habitante do concelho de Grande-Synthe, onde foi autarca, e que alega que os esforços insuficientes do seu Estado para prevenir o aquecimento global aumentam o risco de cheias, a que a sua localidade está especialmente vulnerável, afetando assim o seu direito à vida e direito ao respeito pela vida privada e familiar, direito esse que costuma ser interpretado de forma bastante ampla pelo Tribunal.

2.

Também da insuficiência de esforços de mitigação das alterações climáticas por parte do seu Estado se queixam um conjunto de idosas suíças, alegando ainda a violação do direito a um processo equitativo e a um recurso efetivo, por não poderem fazer valer eficazmente os seus direitos por via de instâncias nacionais. O caso KlimaSeniorinnen procura demonstrar os efeitos de ondas de calor causadas ou potenciadas pelo aquecimento global na vida, saúde e bem-estar dos mais idosos.

3.

Por sua vez, o caso Duarte Agostinho, apelido de três dos seis jovens portugueses, diz respeito às gerações mais novas, tendo também a particularidade de ser uma queixa não apenas contra um, mas contra mais de trinta Estados. O ponto fulcral desta petição é que todos estes Estados contribuem para as emissões globais, devendo ser considerados responsáveis pelo dano e risco que as alterações climáticas causam na vida dos autores desta queixa, dada a trajetória atual, que gera a possibilidade de assistirem ainda em vida a um aquecimento global de 4ºC, violando os seus direitos humanos e contrariando grosseiramente a meta estabelecida pelo Acordo de Paris.

Em termos gerais, estes jovens que têm, agora, entre os 12 e os 25 anos, representados pela ONG Global Legal Action Network, invocam que os efeitos das alterações climáticas, como os incêndios florestais, ameaçam a sua vida, as ondas de calor que os obrigam a permanecer mais tempo em casa afetam a sua saúde mental e física, e salientam que por serem jovens estão numa posição pior relativamente às alterações climáticas.

O advento da litigância climática verifica-se, assim, no TEDH com estes três desafiantes casos, depois de se afirmar como um instrumento cada vez mais utilizado por todo o globo. Talvez sejam estas algumas das decisões mais importantes da história deste Tribunal, esperando-se o maior rigor técnico e capacidade de perceção da real dimensão do problema que tem em mãos.

Os presentes casos irão testar os limites à Convenção como ferramenta de proteção ambiental. Este sistema europeu de proteção de direitos humanos não foi pensado para lidar com um flagelo tão complexo como as alterações climáticas, levantando-se sérias dúvidas de segurança jurídica. Colocam-se, assim, com estes casos climáticos, questões relativas à própria delimitação do estatuto de vítima, de ónus da prova, de estabelecimento de nexos causais entre ações e omissões com a verificação de um dano na esfera de um indivíduo, de partilha de responsabilidade, juízos de atribuição com base em ciência climática, de extraterritorialidade, de jurisdição e muito mais.

Em termos práticos, sabemos que os países contribuem para um bolo geral de emissões que progressivamente aumenta o risco de ocorrência e frequência de fenómenos extremos que afetam o ser humano. Contudo, apurar a responsabilidade dos Estados com exatidão à luz do atual sistema não é de todo fácil, até porque estes eventos são desfasados no tempo e dispersos no espaço.

Os casos que estão em cima da mesa são alertas para um problema sistémico que precisa de retorno. Na generalidade das situações concretas apresentadas não podemos extrair uma ameaça à vida dos queixosos e muito menos, de forma escrupulosa, à sua privacidade, porém não deixam de ser reivindicações legítimas. A maioria das vítimas, ou as organizações que lhes dão voz, representam interesses difusos que também deveriam ser considerados, dado que as alterações climáticas ameaçam os direitos humanos de forma geral, numa escala nunca vista.

As extrações derivadas de outros direitos que existem atualmente na Convenção, como o direito à vida, o respeito pela vida privada ou até a proibição da tortura serão uma tentativa de remendo de um sistema que verdadeiramente precisa de ser renovado e reforçado. É improvável ser-se bem-sucedido num jogo em que não se conhece as regras. Estados, indivíduos, organizações e sobretudo o poder judicial têm de conhecer normas claras, para que se assegure um bom cumprimento das mesmas.

Os riscos de inserir uma peça que não seja à medida desta máquina, através de uma criatividade que não honre o discernimento de MacGyver ou que não importe eficazmente outras boas práticas de várias partes do globo, pode condicionar o seu funcionamento. Estamos perante uma íngreme subida que tanto se pode revelar um dilema de Sísifo ou catapultar este sistema para novos horizontes, disfrutando de uma maior amplitude e visão que permita desenvolver a sua atuação.

Sem prejuízo da interpretação dinâmica da CEDH, seria de todo prudente para os Estados que compõem o Conselho da Europa reconhecer, finalmente, um direito a um ambiente saudável através de um novo protocolo adicional à Convenção, que acautelasse devidamente os desafios jurídicos que as alterações climáticas colocam, de forma que o Tribunal esteja dotado de ferramentas que lhe permitam ter uma atuação previsível num sistema eficiente e justo de proteção de direitos, não tornando cinzento o que se quer verde.

Qualquer que seja a resposta jurídica a cada um destes casos e sua admissibilidade, que se espera diferente, todos eles têm o mérito de reacenderem uma discussão necessária. Sendo evidente a conexão entre alterações climáticas e direitos humanos, precisamos de assegurar que o sistema europeu reforça a sua proteção, sem perder a sua coesão e coerência.

QOSHE - Justiça Climática: De jovens portugueses a idosas suíças, o que podemos esperar do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos? - Francisco Cordeiro De Araújo
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Justiça Climática: De jovens portugueses a idosas suíças, o que podemos esperar do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos?

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08.04.2024

Estamos a horas de conhecer o desenlace de três importantes casos sobre alterações climáticas no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) e um deles envolve um grupo de jovens portugueses. Mais do que grandes euforias ou frustrações, precisamos de compreender o que está realmente em causa e quais as possíveis consequências destas decisões, sem espaço para visões maniqueístas.

Em primeiro lugar, o TEDH não é um tribunal da União Europeia (UE), pertence ao Conselho da Europa, que também não se deve confundir com o Conselho Europeu e com o Conselho da União Europeia, essas sim duas instituições da UE. O Conselho da Europa é uma organização internacional mais antiga, que celebra 75 anos e conta com 46 Estados europeus, ao invés dos 27 da UE, estando focada em três pilares: Democracia, Estado de Direito e Direitos Humanos.

No campo dos Direitos Humanos, os Estados estão vinculados ao respeito da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) e sujeitos à jurisdição do TEDH. Os 46 juízes do Tribunal apreciam, sobretudo, queixas de pessoas contra Estados sobre violações de direitos consagrados na CEDH.

Ao longo da sua história, o Tribunal sedeado em Estrasburgo já lidou com vários casos ambientais. Porém, é a primeira vez que aprecia casos climáticos, que têm uma natureza bastante mais complexa e que colocam desafios jurídicos significativos, cuja resposta ou omissão da mesma podem definir a futura atuação do Tribunal. Também por esse fundamento a discussão destes casos foi agrupada e tida como prioritária.

Estes três casos são algo semelhantes, porém possuem elementos distintivos.

1.

O caso Carême foi impulsionado por um cidadão francês, que é habitante do concelho de Grande-Synthe, onde foi autarca, e que alega que os esforços insuficientes do seu Estado para prevenir o aquecimento global aumentam o risco de cheias, a........

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