Os ministérios da Ciência e Educação condensaram-se num só, que junta o ensino, a ciência e a inovação. Sem tecer comentários sobre a escolha do governo e contribuir para a cacofonia de descontentamento sobre a seleção do novo executivo, esperarei por medidas concretas para tecer considerações. Tomarei outro caminho e debruçar-me-ei sobre aquilo que sabemos neste momento.

Os ministérios da Educação e da Ciência uniram-se, uma medida que aliás já resultou num documento de protesto elaborado por algumas figuras a trabalhar na área, com o apoio de sindicatos associados às causas ligadas ao estado da ciência e do ensino superior. Posto isto, ainda antes de ler esse documento, deixo aqui um desabafo pessoal sobre o estado da ciência e da carreira de investigação em Portugal.

Há alguns anos que trabalho na academia em Portugal, passei por três diferentes universidades/centros de investigação públicos, quase sempre com contratos de curta duração, e há algo transversal a todos eles: a precariedade dos seus investigadores. Essa precariedade é fomentada por uma liberalização completa da política pública relacionada com a carreira académica e afeta todos os momentos profissionais da maioria esmagadora dos investigadores a trabalhar em Portugal.

A expansão da influência das bolsas no início da carreira dos investigadores desencoraja os jovens a prosseguir uma carreira ligada à ciência. Com isto não quero dizer que as bolsas são inúteis. Estas bolsas são uma importante fonte de rendimento para que os recém-chegados à academia completem mestrados e doutoramentos, um instrumento que alavanca o elevador social (atrevo-me a dizer que o valor é bastante razoável, tendo em conta o panorama remuneratório português), no entanto, deixam estes estudantes/investigadores numa situação de fragilidade em várias dimensões.

Relembro que estas bolsas não são contratos de trabalho. Levantam uma série de obstáculos quanto ao início da carreira contributiva, criam vulnerabilidades em caso de doença ou noutras situações cobertas pelos contratos ditos “regulares” e que não constam nas bolsas, nem no caso da adoção do seguro social voluntário. Para além disso, muitas destas bolsas, exceção feita aos concursos anuais da FCT e alguns projetos provenientes de financiamento europeu, são de curta duração: de seis meses, nove meses, com alguma sorte, de um ano.

Esta falta de estabilidade desencoraja os jovens a seguirem a carreira científica, pois encontram um potencial de continuidade noutros setores, com nível remuneratório semelhante, e esperança de um futuro que é inexistente na investigação. Por exemplo, uma bolsa financiada por um projeto Horizon, instrumento de financiamento de projetos da União Europeia, que implica o enquadramento do bolseiro numa equipa de investigação a trabalhar num projeto já existente, apresenta disparidades gritantes com os seus parceiros internacionais.

Segundo o estatuto de bolseiro, um investigador que seja contratado para trabalhar num destes projetos numa instituição nacional, pré-doutoramento ou pós-doutoramento, está sujeito a um contrato de bolsa segundo os valores tabelados pela FCT. Enquanto isso, os colegas na mesma situação profissional que sejam enquadrados na equipa de um parceiro internacional, salvo raras exceções, estão cobertos por um contrato de trabalho e benefícios inerentes. Esta situação representa um esvaziamento da carreira científica em Portugal e um incentivo à “fuga de cérebros” de Portugal para outros destinos europeus, onde a carreira de investigação, mais atrativa, garante um contrato de trabalho equiparado a todos os outros setores.

No entanto, desengane-se quem pensa que esta precariedade só assola os jovens a entrar agora no meio académico e científico. O problema é estrutural. O aumento exponencial das qualificações da população portuguesa nas últimas duas décadas criou um desfasamento entre os indivíduos a tentarem seguir uma carreira entre os corredores da academia e as oportunidades disponíveis. As posições permanentes de docente universitário em instituições de ensino superior são raras, posto isto os investigadores vêm-se obrigados a submeterem-se durante toda a carreira a contratos temporários atribuídos através de concurso público.

O aumento das qualificações aqui referido tornou estes concursos em batalhas competitivas, que obrigam os investigadores a perderem semanas e, muitas vezes, meses de trabalho a prepararem as suas candidaturas. A taxa de sucesso das candidaturas em todos os concursos é reduzidíssima. Portanto, enquanto os investigadores se dedicam a completar todos os requisitos para uma candidatura que se quer vasta e completa, os seus objetos de estudo científico ficam arrumados nas gavetas dos gabinetes durante meses, a perder atualidade, criatividade e sujeitos a que uma nova publicação retire validade ao trabalho científico já realizado pelos investigadores portugueses (ou em território nacional) nesta situação.

Findos os processos de candidatura, desmotivados pelos resultados, os investigadores regressam à sua atividade principal cansados de mais um esforço infrutífero e com o trabalho científico por acabar. Trabalho esse que precisa de ser publicado para que o currículo ganhe mais uns pontos para o próximo concurso. Este efeito bola de neve arrasta-se durante anos e anos, o número de baixas cresce no seio académico, enquanto todos tentam garantir um sustento de longo-prazo para as suas famílias e para a sua saúde mental.

Os jovens em posições semelhantes à minha, ainda com carreiras por provar, são os que têm menos razões de queixa. O principal problema sistémico reside nos académicos nos seus quarentas, cinquentas e por vezes sessenta anos, que representaram o país em conferências internacionais, integraram gabinetes de especialistas da União Europeia, são vistos como referências nas suas áreas e, no entanto, são forçados a deixar a academia. Há académicos reconhecidos internacionalmente em todos os domínios científicos, que veem os seus projetos negados devido à extrema competitividade dos concursos e são obrigados a mudar de carreira numa idade que dificulta a sua integração noutros mercados laborais. A acrescentar muitas vezes às carreiras contributivas titubeantes, devido às bolsas e instrumentos de financiamento já aqui discutidos.

As instituições e entidades que regulam a relação entre o ensino superior e a ciência têm um problema estrutural em mãos que está a degradar a qualidade da investigação em Portugal. Apontar culpados é um exercício estéril e há outros setores em situações de igual ou maior precariedade, no entanto, reitero que não se pode fazer ciência à beira do precipício. A larga maioria dos investigadores está agarrada apenas com as pontas dos dedos ao limiar do precipício. Sabem que serão os próximos a cair e, se não caírem, irão forçar a queda de alguém que lhes é próximo, um par, um parceiro na produção científica e, não raras vezes, um amigo.

A criação de um superministério até se poderá revelar frutífera se a concentração de funções se traduzir num comportamento organizacional que conduza a uma melhor coordenação da estrutura, que mitigue as barreiras na transição entre ensino superior e as carreiras de investigação.

A FCT tem feito um esforço para encontrar novos instrumentos de financiamento para estabilizar as carreiras científicas, mas é necessário um investimento da política pública que possa colmatar tantos anos de disparidade entre as qualificações da população e as oportunidades disponíveis. Que proteja os investigadores com longas carreiras financiadas através de uma sucessão infindável de contratos precários. Este é um dos grandes e oportunos desafios para esta amálgama de ministérios, que não conta com um secretário de estado para o ensino superior, num novo contexto em que devemos preservar o valor das hipóteses testadas para combater a disseminação da desinformação.

QOSHE - Com ou sem superministério, a Ciência não se pode fazer à beira do precipício - Bernardo Valente
menu_open
Columnists Actual . Favourites . Archive
We use cookies to provide some features and experiences in QOSHE

More information  .  Close
Aa Aa Aa
- A +

Com ou sem superministério, a Ciência não se pode fazer à beira do precipício

7 0
10.04.2024

Os ministérios da Ciência e Educação condensaram-se num só, que junta o ensino, a ciência e a inovação. Sem tecer comentários sobre a escolha do governo e contribuir para a cacofonia de descontentamento sobre a seleção do novo executivo, esperarei por medidas concretas para tecer considerações. Tomarei outro caminho e debruçar-me-ei sobre aquilo que sabemos neste momento.

Os ministérios da Educação e da Ciência uniram-se, uma medida que aliás já resultou num documento de protesto elaborado por algumas figuras a trabalhar na área, com o apoio de sindicatos associados às causas ligadas ao estado da ciência e do ensino superior. Posto isto, ainda antes de ler esse documento, deixo aqui um desabafo pessoal sobre o estado da ciência e da carreira de investigação em Portugal.

Há alguns anos que trabalho na academia em Portugal, passei por três diferentes universidades/centros de investigação públicos, quase sempre com contratos de curta duração, e há algo transversal a todos eles: a precariedade dos seus investigadores. Essa precariedade é fomentada por uma liberalização completa da política pública relacionada com a carreira académica e afeta todos os momentos profissionais da maioria esmagadora dos investigadores a trabalhar em Portugal.

A expansão da influência das bolsas no início da carreira dos investigadores desencoraja os jovens a prosseguir uma carreira ligada à ciência. Com isto não quero dizer que as bolsas são inúteis. Estas bolsas são uma importante fonte de rendimento para que os recém-chegados à academia completem mestrados e doutoramentos, um instrumento que alavanca o elevador social (atrevo-me a dizer que o valor é bastante razoável, tendo em conta o panorama remuneratório português), no entanto, deixam estes estudantes/investigadores numa situação de fragilidade em várias dimensões.

Relembro que estas bolsas não são contratos de trabalho. Levantam uma série de obstáculos quanto ao início da carreira contributiva,........

© Expresso


Get it on Google Play