António Guterres foi claro ao afirmar que “uma ofensiva militar contra Rafah seria uma escalada inadmissível, que mataria muitos milhares de civis mais e obrigaria centenas de milhares a fugir”. Também foi direto, mesmo sem mencionar o nome do principal país visado, quando na mesma altura apelou “a todos os que têm influência sobre Israel para que façam tudo o que puderem” a fim de evitar que essa ofensiva ocorra. Nesta matéria, a posição do secretário-geral da ONU é cristalina: uma operação armada contra o milhão e meio de palestinianos que agora se refugiam em Rafah será, se for levada a cabo, uma tragédia incomensurável. Eu mencionaria uma outra dimensão: tem todas as hipóteses para acrescentar um número incalculável de crimes de guerra aos que mais tarde ou mais cedo terão de ser investigados e julgados.

O presidente Joe Biden está consciente da gravidade desta situação. Tem expressado sem ambiguidades a sua oposição. Antony Blinken acaba aliás de a repetir aos dirigentes israelitas. Mas faltam às autoridades norte-americanas duas características fundamentais: firmeza e neutralidade. De que serve expressar uma opinião contrária às intenções bélicas de Benjamin Netanyahu quando, ao mesmo tempo, se lhe faz chegar uma nova remessa de armamento altamente sofisticado? É como dizer a um alcoólico crónico que deixe de beber e, como prémio, se lhe ofereça um garrafão de vinho do melhor. O fulano perceberia a coisa como conversa mole, apenas para a família e a vizinhança ouvirem. Quanto à neutralidade, como se pode pedir um cessar-fogo que dure apenas umas semanas, sabendo que uma vez terminado, a morte voltará às ruas e aos campos de deslocados de Gaza e o ataque a Rafah finalmente acontecerá? Quem propõe algo assim não pode ser considerado como um mediador a sério e isento, nem pode esperar uma resposta positiva do lado que sabe que acabará por ser bombardeado.

O cessar-fogo tem de ser duradouro e vantajoso para ambas as populações. Na realidade, o cessar-fogo deve ser tratado como uma primeira etapa de um processo mais longo, que leve à paz e a uma solução definitiva de um conflito que se arrasta, de modo inaceitável, há décadas. Estamos, na minha opinião, num momento que poderá ser de viragem. Se for abordado com inteligência estratégica e imparcialidade, temos aqui uma oportunidade histórica para a resolução da questão israelo-palestiniana e para a estabilização das relações entre distintos povos. O secretariado das Nações Unidas, em conjunto com um certo número de países influentes, deveria aproveitar a ocasião para propor um roteiro político que progressivamente consolidasse o direito de todos a viver com dignidade e em paz, naquela parte do Médio Oriente. Não seria fácil formular esse plano. Mas é a única via recomendável e a maneira mais direta de implicar a comunidade das nações, através da ONU e da região, na resposta a um problema internacional gravíssimo, mas que ainda é solucionável.

Netanyahu e o seu gabinete de guerra estão decididos, assim o repetem, a avançar contra Rafah, quer haja cessar-fogo quer não. Esta decisão retira qualquer tapete ao lado palestiniano. Para além de uma breve trégua humanitária, que mais teria a população de Gaza a ganhar?

Os dirigentes israelitas deveriam partilhar com o seu povo e com as populações dos territórios ocupados uma visão de paz para o futuro. A defesa contra os grupos armados e a sua neutralização não são alcançáveis com exércitos de ocupação, mísseis e a detenção de milhares de pessoas. Bem pelo contrário, tem de haver um projeto de paz, faseado, credível e equilibrado. Sejamos, todavia, claros: o primeiro passo construtivo, assim o aprendi ao longo de uma vida de mediação de conflitos, tem de ser dado pelo mais forte. Também aprendi que deve vir da liderança nacional, como porta-voz de uma vontade bem enraizada na sociedade. Não pode expressar apenas uma imposição imposta de fora. O exterior, os outros países, por muito poderosos que sejam, acabam sempre por desempenhar tão-somente o papel de acompanhamento e de assessoria, de modo a manter as partes no trilho que tenha sido traçado.

Neste momento tão grave, aproveito para sublinhar que é incompreensível o silêncio do Tribunal Penal Internacional. Agora, mais do que nunca, com Rafah à beira da catástrofe, esse silêncio tem de ser quebrado alto e bom som.

QOSHE - Atacar militarmente Rafah, uma decisão inaceitável - Victor Ângelo
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Atacar militarmente Rafah, uma decisão inaceitável

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03.05.2024

António Guterres foi claro ao afirmar que “uma ofensiva militar contra Rafah seria uma escalada inadmissível, que mataria muitos milhares de civis mais e obrigaria centenas de milhares a fugir”. Também foi direto, mesmo sem mencionar o nome do principal país visado, quando na mesma altura apelou “a todos os que têm influência sobre Israel para que façam tudo o que puderem” a fim de evitar que essa ofensiva ocorra. Nesta matéria, a posição do secretário-geral da ONU é cristalina: uma operação armada contra o milhão e meio de palestinianos que agora se refugiam em Rafah será, se for levada a cabo, uma tragédia incomensurável. Eu mencionaria uma outra dimensão: tem todas as hipóteses para acrescentar um número incalculável de crimes de guerra aos que mais tarde ou mais cedo terão de ser investigados e julgados.

O presidente Joe Biden está consciente da gravidade desta situação. Tem expressado sem ambiguidades a sua oposição. Antony Blinken acaba aliás de a repetir aos dirigentes israelitas. Mas faltam às autoridades norte-americanas duas características fundamentais:........

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