As Cortes de Coimbra de 1385 são, por diversas razões, de crucial importância para a História de Portugal.

Naquele período, controverso e conturbado, existiam três partidos no país, mas na ausência óbvia do nacionalista que, à luz do Tratado de Salvaterra de Magos, considerava a rainha D. Beatriz, legítima herdeira do trono português, naquelas Cortes, só estavam representados dois:
O legitimista-nacionalista, constituído por partidários dos infantes D. João e D. Dinis, filhos do rei D. Pedro e D. Inês de Castro; e o revolucionário, encabeçado por D. João, Mestre de Avis, cuja candidatura, a ser sugerida, - por ser necessário ocupar o trono vago, por alguém que reunisse os requisitos de elegibilidade e tivesse demonstrado ser altamente merecedor -, só depois de ter sido provado que os infantes D. João e D. Dinis eram ilegítimos, e que não podiam herdar o trono português, por terem combatido contra Portugal.

Para sua análise e explanação, muitos historiadores consideram peça fundamental o estudo do chamado discurso do doutor João das Regras. Admito que ele tenha proferido naquelas Cortes um ou mais discursos, ou até nenhum, mas o constante na crónica, capítulos 181 a 192, foi criado por Fernão Lopes, com base em documentos e metido na boca do legista.
Assim, os capítulos 182 e 183 têm como base documental o auto de eleição de D. João I; o 184, a inquirição de 30 de Março de 1385; o 185, o contrato de casamento de Salvaterra de Magos; os 186 e 187, o auto de 18 de Junho de 1360, onde é justificado, publicamente, o casamento do rei D. Pedro com D. Inês; os 189 e 190, as cartas, as súplicas reais e as respostas papais; e os 191 e 192, o auto de eleição.

É claro que houve muitos e vibrantes discursos nas Cortes de Coimbra, mas se não foi, essencialmente, a argumentação aí proferida, incluindo a possível apresentação de "huũ grãde rrooll de purgaminho husado de velhice", feita pelo doutor João de Regras, em que o papa Inocêncio VI respondia negativamente ao pedido de ratificação do casamento de D. Pedro com D. Inês de Castro e da legitimação dos seus filhos, o que teria acontecido antes e durante as Cortes para D. João, Mestre de Avis, ser eleito rei de Portugal?

Escreve o cronista que, em Coimbra, enquanto os clérigos, em procissão, os leigos, os fidalgos e os membros do concelho aguardavam a chegada do Mestre, muitos cachopos, sem ninguém lhes mandar, foram esperá-lo à entrada da cidade, gritando entusiasticamente: "Portugall ! Portugall ! por elRey dom Joham ! em boa hora venha o nosso Rei !"

Essa atitude dos moços, quase de certeza orquestrada, como tantas outras que conhecemos ao longo dos tempos na História dos países, foi um acto cuidadosamente concebido pelos líderes do processo revolucionário.

Sabemos que o apoio popular aparece quando surge a necessidade de legitimar um movimento revolucionário para que este não seja considerado uma rebelião contra o poder instituído. Em três momentos mais difíceis, da primeira revolução portuguesa, este apoio não deixa de se fazer sentir: logo no início, após a morte do conde Andeiro, em que o povo se mobiliza para defender o Mestre de Avis e depois manifesta-lhe todo o seu apoio nas ruas de Lisboa; no episódio de ratificação da sua eleição a Regedor, onde o povo ameaça de morte os oponentes; e em Coimbra, com os miúdos a aclamarem rei D. João, Mestre de Avis, mesmo antes do início das Cortes.

É indubitável que o infante D. João chegou a ser a figura muito amada em Portugal, e é provável que o Mestre, quando decidiu matar o conde Andeiro, estivesse longe de imaginar que um dia podia acalentar vir a ser rei de Portugal, mas a prisão do infante D. João, em Castela, sem indícios de libertação, permitiu-lhe, após momentos de grande indecisão, firmar-se como chefe, ganhar notoriedade, um acentuado prestígio nas acertadas resoluções que ia tomando e lançar as bases para a consolidação e alargamento do seu poder.

Sendo um político de convergências, é através de uma política inteligente, de firmeza quando necessário, de consensos e recuos quando obrigado, de permanente abertura a novas adesões, de não hostilização nem afrontamento para com os indecisos, de uma guerra planificada contra o inimigo, e de uma campanha ideológica muito bem concertada que ele, provavelmente, depois do seu encontro com frei João da Barroca, em Lisboa, começa a acreditar, seriamente, na possibilidade de vir a ser rei de Portugal.

Com forte apoio popular, rodeado de conselheiros fiéis e altamente credenciados, labuta com eles, em segredo, para alcançar o objectivo em vista.

Assim, é na própria linguagem documental que se vai insinuando, lentamente, no espírito dos seus apoiantes e agraciados, ao afirmar, apesar de ser só Regedor, que faz mercês "como cada huum rey he theudo de fazer", ou como cada um "Rey deue fazer a boo E leal serujdor".

O primeiro documento que encontrámos, onde o Mestre faz essa afirmação, está datado de 14 de Março de 1384. No dia 2 de Abril, surge outra referência e, em Maio, repetem-se em 2, 7 e 15. Isto é, o Mestre, sem afirmar que é rei e que se comporta como tal, vai escrevendo nos documentos, a circularem livremente, que a sua actuação, em relação as seus servidores, deve ser igual à de um rei.

Não é, pois, de admirar que no mês de Outubro, D. João, bispo de Évora, e Fernão Gonçalves de Arca fossem incumbidos de garantir o incondicional apoio concelhio das vilas e lugares de Entre-Tejo-e-Odiana e de Além Odiana aos seus projectos em Coimbra.

A dificuldade na escolha definitiva dos procuradores de Loulé e o receio manifestado pelos homens bons daquela vila em enviar para Coimbra, ou onde as cortes se realizassem, os seus representantes anteriormente designados; a promessa antecipada do Mestre de que naquela cidade seriam satisfeitos os seus pedidos; a decisão dos procuradores de Lisboa, Évora e de todas as outras vilas e cidades, presentes em Coimbra, de que não discutiriam as diversas candidaturas, mas apoiariam apenas a do Mestre e mais nenhuma, revela que o terreno tinha sido cuidadosamente trabalhado antes do início e no decurso dos trabalhos daquelas Cortes.
Os seus capítulos gerais e outros documentos comprovam que o Mestre teve forte apoio concelhio, com predomínio de Lisboa, Évora, Porto e Coimbra, cabendo à capital portuguesa o papel primacial.

O mês de Abril de 1384 é o mês de maior número de doações concelhias joaninas, que totalizam 74, com muitos concelhos a alargarem os seus termos, por motivos políticos ou de defesa.

Se o auto de eleição, sem fazer uma relação completa das localidades representadas em Coimbra, menciona a presença de procuradores de 34 cidades e vilas, a documentação acrescenta mais 23. Das 34, 10 já tinham sido beneficiadas antes das cortes e 12 vão ser durante as Cortes, ou seja, 64,7% dos concelhos, constantes no auto, já estavam comprometidos com o Mestre.

Se centenas de doações individuais já haviam sido feitas antes das Cortes de Coimbra, as 82 efectuadas nessa cidade também pesaram no prato da balança da sua dissimulada candidatura. Das 72 individualidades constantes no auto de eleição, cerca de 54,2% foram agraciadas antes das Cortes, cerca de 8,4% em Coimbra, e cerca de 6,9% logo depois daquelas cortes.

O Mestre não recebeu só apoios concelhios e individuais, de leigos e clérigos. Mosteiros, cabidos, confrarias e frades também se associaram e contribuíram para a sua eleição, daí terem sido compensados com 19 doações.

Em relação aos prelados citados no auto de eleição, sobre o abade de Bostelo e D. Lourenço, bispo de Lamego, não encontramos qualquer referência documental em Coimbra, mas os restantes 9 são aí beneficiados.

Esses suportes foram de tal maneira importantes para o Mestre e compensadores para os próprios, que os elementos mais destacados do processo revolucionário estarão, doravante, intimamente ligados à governação saída de Coimbra. Além disso, importantes cargos foram distribuídos após a celebração daquelas Cortes.

Se Martim Vasques da Cunha e seus familiares defendiam, intransigentemente, a candidatura do infante D. João, parece ter havido uma negociação para o seu pai, Vasco Martins da Cunha, ser proposto para ser conselheiro do futuro rei D. João I.

Recordamos que, para eliminar os teimosos e intransigentes, Nuno Álvares Pereira vai ao paço real, levando consigo 300 escudeiros armados, prontos para despachar quem quisesse estorvar a candidatura do Mestre.

Entendemos que as pressões e toda a interdependência que se foi criando e entrelaçando, gradualmente, no decurso do processo revolucionário, entre o Mestre de Avis e os participantes das Cortes de Coimbra e entre esses e o próprio Mestre, funcionaram como factor decisivo no xadrez político que se desenrolou naqueles conturbados tempos da História de Portugal.

É nessa comunhão de interesses, fundamentalmente políticos, que se deve procurar a primacial razão da eleição do Mestre de Avis como rei de Portugal, porque aquelas Cortes decorreram, sob condições previamente definidas e asseguradas, com a intenção de formalizar um acto a que se pretendia dar um cariz de imparcialidade. Em Coimbra, os revolucionários conseguiram fazer triunfar a causa que defendia a independência nacional, elegendo solenemente um rei português, e legitimando, juridicamente, a revolução.

Pela primeira vez na história de Portugal, a sucessão hereditária foi substituída pela eleição revolucionária, legitimada pelas Cortes, onde estavam representados os três braços do Estado, o clero, a nobreza e o povo, rompendo-se com a tradição centenária do nosso direito consuetudinário. O governo ilegítimo, que vivia provisoriamente, passou a ser legítimo e definitivo, e o governo legítimo passou a ser definitivamente ilegítimo. A tradicional legalidade institucional foi substituída pela legitimidade revolucionária.

É indubitável que D. João, Mestre de Avis, foi aclamado rei de Portugal em 6 de Abril de 1385, mas quando teria sido eleito?

Segundo Fernão Lopes e o Livro da Noa, ele chegou à cidade de Coimbra em 3 de Março de 1385.

Os documentos não garantem, ao certo, quando é que foi eleito rei, mas se considerarmos à letra os protocolos das cartas joaninas, da leitura de seus 58 documentos encontrados até o dia 5 de Abril, datados de Coimbra, podemos concluir que foi eleito rei entre 11 e 16 de Março de 1385, porque antes do dia 11 é denominado Regedor e Defensor. No documento do dia 13, que é uma ementa, consta no protocolo apenas «Carta per que o dito senhor», e a partir do dia 16, que tem a data por extenso, é intitulado rei de Portugal e do Algarve.

É verdade que se pode pôr em causa essa conclusão, porque as cartas do Livro I da Chancelaria joanina são cópias de documentos, logo susceptíveis de conterem erros do escriba, todavia, o que podemos garantir, através de um documento original, é que no dia 3 de Abril já era, de certeza, rei de Portugal, porque na doação feita a Guiomar Gonçalves, D. João confirma, como rei de Portugal, por sua carta de 3 de Abril de 1385, a sua carta que "foy dada E outorgada em seendo asy Regedor E defensor dos dictos Reynos" (Chancelaria de D. João I, Livro V, fl. 53).

Quais serão as prioridades do rei Português após as Cortes de Coimbra?

Historiador

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

QOSHE - XXII – As Cortes de Coimbra de 1385  - Valentino Viegas
menu_open
Columnists Actual . Favourites . Archive
We use cookies to provide some features and experiences in QOSHE

More information  .  Close
Aa Aa Aa
- A +

XXII – As Cortes de Coimbra de 1385 

10 0
09.11.2023

As Cortes de Coimbra de 1385 são, por diversas razões, de crucial importância para a História de Portugal.

Naquele período, controverso e conturbado, existiam três partidos no país, mas na ausência óbvia do nacionalista que, à luz do Tratado de Salvaterra de Magos, considerava a rainha D. Beatriz, legítima herdeira do trono português, naquelas Cortes, só estavam representados dois:
O legitimista-nacionalista, constituído por partidários dos infantes D. João e D. Dinis, filhos do rei D. Pedro e D. Inês de Castro; e o revolucionário, encabeçado por D. João, Mestre de Avis, cuja candidatura, a ser sugerida, - por ser necessário ocupar o trono vago, por alguém que reunisse os requisitos de elegibilidade e tivesse demonstrado ser altamente merecedor -, só depois de ter sido provado que os infantes D. João e D. Dinis eram ilegítimos, e que não podiam herdar o trono português, por terem combatido contra Portugal.

Para sua análise e explanação, muitos historiadores consideram peça fundamental o estudo do chamado discurso do doutor João das Regras. Admito que ele tenha proferido naquelas Cortes um ou mais discursos, ou até nenhum, mas o constante na crónica, capítulos 181 a 192, foi criado por Fernão Lopes, com base em documentos e metido na boca do legista.
Assim, os capítulos 182 e 183 têm como base documental o auto de eleição de D. João I; o 184, a inquirição de 30 de Março de 1385; o 185, o contrato de casamento de Salvaterra de Magos; os 186 e 187, o auto de 18 de Junho de 1360, onde é justificado, publicamente, o casamento do rei D. Pedro com D. Inês; os 189 e 190, as cartas, as súplicas reais e as respostas papais; e os 191 e 192, o auto de eleição.

É claro que houve muitos e vibrantes discursos nas Cortes de Coimbra, mas se não foi, essencialmente, a argumentação aí proferida, incluindo a possível apresentação de "huũ grãde rrooll de purgaminho husado de velhice", feita pelo doutor João de Regras, em que o papa Inocêncio VI respondia negativamente ao pedido de ratificação do casamento de D. Pedro com D. Inês de Castro e da legitimação dos seus filhos, o que teria acontecido antes e durante as Cortes para D. João, Mestre de Avis, ser eleito rei de Portugal?

Escreve o cronista que, em Coimbra, enquanto os clérigos, em procissão, os leigos, os fidalgos e os membros do concelho aguardavam a chegada do Mestre, muitos cachopos, sem ninguém lhes mandar, foram esperá-lo à entrada da cidade, gritando entusiasticamente: "Portugall ! Portugall ! por elRey dom Joham ! em boa hora venha o nosso Rei !"

Essa atitude dos moços, quase de certeza orquestrada, como tantas outras que conhecemos ao longo dos tempos na História dos países, foi um acto cuidadosamente concebido pelos líderes do processo revolucionário.

Sabemos que o apoio popular aparece quando surge a necessidade de........

© Diário de Notícias


Get it on Google Play