O poderoso exército castelhano, com efectivos terrestres concentrados em Santos, Alcântara, Campolide e nos seus arredores, aguardava serenamente a rendição da cidade de Lisboa, cercada por terra e pelo mar.

As escaramuças entre os beligerantes eram frequentes, provocando mortos e feridos de parte a parte, principalmente junto da porta de Santa Catarina, onde os lisboetas tinham montado um hospital de campanha para socorrer os necessitados.

Após efectivação do cerco da capital, o rei de Castela esperava que Almada depreendesse qual seria a sorte a si reservada. Convidada a tomar o seu partido, em troca de mercês, os almadenses respondem-lhe que, sendo portugueses, secundariam a decisão lisboeta.

Em represália, estando Almada cercada há cerca de dois meses, perante a sua intransigência e tenaz resistência, é o próprio rei castelhano que participa e anima os sitiantes, sem alcançar o objectivo desejado. Zangado, ordena combate diário, prometendo conquistá-la pela força e nunca aceitar a rendição.

Para poderem persistir na decisão, os almadenses tinham mantimentos para mais de seis meses, mas só dispunham de água recolhida de uma cisterna. Quando esta se esgota, bem como a imunda, saída da regueira para esgoto, homens, mulheres e crianças começam a morrer de sede.

Após conseguirem transmitir ao Mestre, com sinais de fogo, o desespero em que viviam, este estabelece a ligação, através de um exímio nadador, levando e trazendo mensagens, em seis travessias nocturnas.

Tendo-se agravado ainda mais a situação, a ponto de se tornar insuportável, o Mestre achou por bem recomendar a rendição, que só é aceite pelo despeitado rei de Castela, a pedido da rainha D. Beatriz, em 30 de Agosto de 1384.

Essa rendição reforça a convicção real de que Lisboa seguiria também o seu exemplo. Era só uma questão de maior pressão e persistência.

Mas os problemas do Mestre não acabam aqui. Ésujeito também a traição de D. Pedro de Castro, filho do falecido D. Álvaro Peres de Castro, conde de Arraiolos, que, quanto a nós, pode ter uma explicação diferente da constante na crónica lopeana.

É claro que o rei de Castela, estando com dificuldades para conseguir a rendição da cidade, não se importou de comprar a traição de D. Pedro e dos seus vassalos, a troco de grande quantidade de ouro e prata, garantindo a entrada inimiga pela parte da cidade posta à sua guarda, mas não podemos deixar também de considerar que o partido dos Castros, viam com muito maus olhos o distanciamento da candidatura, ao trono português, do infante D. João, e a afirmação, cada vez mais consistente, do Mestre de Avis, no palco político.

Denunciada a traição, são todos presos, em 15 de Agosto de 1384, noite combinada para colocarem uma candeia, na seteira do muro, por onde entrariam os castelhanos. Uma semana depois, todos os traidores são despojados de armas e expulsos da cidade, assim como alguns galegos e castelhanos, excepto D. Pedro, que continuou encarcerado.

Aproveitando a ocasião da subida máxima da maré, no dia 27 do mesmo mês, o rei castelhano procura surpreender os defensores, ordenando que a sua armada capture as naus e galés, ancoradas junto à margem do rio Tejo, porém, proibindo que fossem queimadas, por considerar serem suas. Pouco antes de iniciar essa acção, como manobra de diversão, manda, o conde de Maiorgas, atacar Lisboa, em força, desde a porta de Santa Catarina até Cata-Que-Farás.

As duas investidas são repelidas, com participação de muitos citadinos, oportunas deliberações e vigorosos incitamentos do Mestre.

Como a resistência lisboeta se mantinha firme e a peste continuava a causar acentuados danos nos atacantes, tanto na terra como na frota, mediante autorização real, Pero Fernandes de Velasco tenta um acordo com o Mestre, oferecendo-lhe mercês e importante cargo em troca de rendição. Com a mesma intenção vai actuar Pedro Álvares Pereira, também sem sucesso, daí ser conclusão geral que esta contenda só se resolveria pela força das armas.

Entretanto, para aumentar ainda mais as carências dos sitiados, após a rendição de Almada, Lisboa ficara privada de alguns dos mantimentos que, encobertamente, lhe eram enviados de noite, assim como da parca ajuda ribatejana, por traição de um almadense. Descoberto, vai ser preso, arrastado, decepado e enforcado.

Com a persistência do cerco, a situação de Lisboa tornava-se cada vez mais indefensável. Por isso, os mais fracos, os judeus, as mulheres mundanas e os que não estavam em condições para colaborar na defesa, nem tinham alimentos próprios, são expulsos.

O espectáculo, no interior da cidade esfomeada, era triste. Os alimentos, quando não estavam esgotados, eram muito caros. As crianças eram ensinadas a mendigar. Havia quem sobrevivesse comendo pão de bagaço da azeitona, queijo das malvas e raízes das ervas. Porém, nem todos resistiam a esses sofrimentos e os mais pobres, homens, mulheres e crianças, pagavam com a vida o preço da sua luta pela defesa da independência nacional. Contudo, os sobreviventes, apesar de suportarem estes e outros padecimentos, não viravam a cara à luta e respondiam pressurosos sempre que eram chamados para acudir à sua cidade.

De tantas agruras sofridas, os receosos da vingança real maldiziam a sua sorte, preferindo que tivesse havido rendição.

Apesar de tudo, o Mestre não foi apenas apoquentado com padecimentos, pois também recebe notícias animadoras: soube que D. Lopo Dias de Sousa, Mestre da Ordem de Cristo, se apossara da vila de Ourém, por consentimento de alguns dos seus moradores, onde prendera dois filhos do conde de Barcelos, com todos os seus guardas; Diogo Lopes Pacheco e os seus filhos haviam vindo, de Castela, para o servir; Nuno Álvares Pereira desbaratara uma coluna castelhana, perto de Punhete (Constança), apoderara-se ardilosamente do castelo de Monsaraz, obrigara João Rodrigues de Castanheda a recolher-se a Badajoz, atacara os arrabaldes do castelo de Almada e fora retemperar as suas forças em Palmela, de onde enviava sinais luminosos aos lisboetas cercados, correspondidos efusivamente.

Nessas circunstâncias tão peculiares, se os portugueses sentiam cada vez maiores dificuldades para resistir, também os castelhanos verificavam que era custoso persistir no cerco, em condições tão adversas, porque a peste continuava a atacá-los em força, tendo já matado muitos capitães e mais de dois mil homens de armas.

O tempo corria a favor e contra os dois antagonistas. Quem revelasse maior firmeza nas suas convicções e maior espírito de sacrifício podia ganhar a contenda.

A acreditar em Fernão Lopes, a mão de Deus protegia os portugueses, porque mesmo quando os prisioneiros eram colocados, propositadamente, juntos dos castelhanos, infectados pela peste, ninguém era contagiado. Embora não tenhamos encontrado nenhum documento que mencione a morte dos defensores, atacados pela peste, então grassada, por mais que gostemos do cronista, custa-nos a acreditar que só os castelhanos tenham perecido.

Levantado o cerco, é em Torres Vedras que o rei de Castela escreve aos representantes da cidade de Leão, justificando a sua decisão: por causa da grande mortandade provocada pela peste; pelo insistente pedido que lhe faziam nesse sentido; pela aproximação do inverno, que só causaria danos sem proveito; porque as vilas das comarcas vizinhas não teriam condições para continuar a alimentá-los até Junho do ano seguinte; porque os custos da manutenção do contingente, que necessitava de ser refrescado e reequipado, seriam maiores que o previsto.

Pela importância que revestiam as derradeiras deliberações tomadas por D. João I em Portugal, antes do seu regresso a Sevilha, o cronista Pero Lopez de Ayala, que desejava defender a viabilidade do projecto e comprovar que a empresa era militarmente exequível, apresenta uma longa lista de cavaleiros que, por ordem daquele monarca, exerciam os seus comandos em Portugal.

Partira em 14 de Outubro de 1384 e a frota em 28mas, na citada carta, informa que deixara os seus efectivos nos castelos e vilas que o apoiavam, em Portugal, assim distribuídos:

Nos arredores de Lisboa, 1.600 lanças, 800 besteiros, 2.000 peões; em Entre-Tejo-e-Odiana, 600 lanças, 400 besteiros e 1.000 peões; em Entre-Douro-e-Minho, 500 lanças e 500 peões; em Trás-os-Montes, 300 lanças e 500 peões; em Riba Côa, 400 lanças e 400 peões (acerca do nome dos cavaleiros, da especificação dos castelos e vilas, da sua localização e mapa, veja-se Valentino Viegas, Uma Revolução pela Independência Nacional nos Finais do Século XIV, vol. I, Lisboa 1996, pp. 215-221; A Primeira Revolução Portuguesa, Livros Horizonte, Lisboa, 2008, pp. 84-89).

Como a organização defensiva e ofensiva se centrava, em todo o país, nos castelos, o rei de Castela pôs especial cuidado na manutenção e reforço das praças de armas que dominava, colocando nas alcaidarias, de preferência, galegos e castelhanos a portugueses, mesmo de sua confiança, sendo a missão geral, de todas as vilas e castelos, a de praticar todo o dano possível às vilas e castelos que estavam contra ele.

Como a região de Lisboa e a de Entre-Tejo-e-Odiana eram as que mais dificuldades lhe ofereciam, não é de admirar que os arredores da capital tivessem mais efectivos castelhanos do que os de Entre-Douro-e-Minho, Trás-os-Montes e Riba Côa juntos.

Analisando o mapa das localidades, onde estavam estacionados os contingentes inimigos, observa-se que existem três grandes manchas dominantes:

A primeira ocupa todo o norte de Portugal, cujos limites, mais ao sul, passam por Faria, Vermoim, Celorico de Basto, Vila Real, Gouveia e Bemposta; a segunda ocupa toda a zona raiana oriental, que começa com Gouveia e desce por Castelo Melhor, Covilhã, Belver, Alter do Chão, Portel até Moura e Noudar; a terceira ocupa uma zona cujo perímetro se circunscreve a Atouguia, Óbidos, Santarém, Almada e o Atlântico, sem passar por Lisboa, mas envolvendo-a.

Ressalta dessa leitura que, para além de uma grande parte do Alentejo e de todo o Algarve, existe uma vasta mancha onde parece não se fazer sentir a influência permanente das forças inimigas, zona compreendida entre Faria, Vermoim, Celorico de Basto, Vila Real, Gouveia, Castelo Melhor, Covilhã, Belver, Santarém, Óbidos, Atouguia e o oceano.

Das três linhas de castelos existentes em Portugal, a partir de Moura e Noudar para o norte, toda a faixa oriental da fronteira portuguesa estava fortalecida por guarnições castelhanas, com especial incidência nos castelos do priorado do Crato, na Beira e a Norte de Vila Real.

Na costa ocidental, Almada, Sintra, Alenquer, Torres Vedras, Santarém, Atouguia e Óbidos eram armas apontadas contra Lisboa, enquanto os castelos de Faria, Vermoim, Guimarães, Celorico de Basto, Vila Real, e todos os outros castelos posicionados mais ao norte, vigiavam a cidade do Porto. E, tal como o Porto, também a cidade de Évora era observada, à distância, por Moura, Portel, Vila Viçosa e Olivença.

Libertados da pressão da presença real, mas não da sua força militar, que iniciativas tomarão os revolucionários?

Historiador.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

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XX–Da persistência do cerco a Lisboa ao seu levantamento

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05.11.2023

O poderoso exército castelhano, com efectivos terrestres concentrados em Santos, Alcântara, Campolide e nos seus arredores, aguardava serenamente a rendição da cidade de Lisboa, cercada por terra e pelo mar.

As escaramuças entre os beligerantes eram frequentes, provocando mortos e feridos de parte a parte, principalmente junto da porta de Santa Catarina, onde os lisboetas tinham montado um hospital de campanha para socorrer os necessitados.

Após efectivação do cerco da capital, o rei de Castela esperava que Almada depreendesse qual seria a sorte a si reservada. Convidada a tomar o seu partido, em troca de mercês, os almadenses respondem-lhe que, sendo portugueses, secundariam a decisão lisboeta.

Em represália, estando Almada cercada há cerca de dois meses, perante a sua intransigência e tenaz resistência, é o próprio rei castelhano que participa e anima os sitiantes, sem alcançar o objectivo desejado. Zangado, ordena combate diário, prometendo conquistá-la pela força e nunca aceitar a rendição.

Para poderem persistir na decisão, os almadenses tinham mantimentos para mais de seis meses, mas só dispunham de água recolhida de uma cisterna. Quando esta se esgota, bem como a imunda, saída da regueira para esgoto, homens, mulheres e crianças começam a morrer de sede.

Após conseguirem transmitir ao Mestre, com sinais de fogo, o desespero em que viviam, este estabelece a ligação, através de um exímio nadador, levando e trazendo mensagens, em seis travessias nocturnas.

Tendo-se agravado ainda mais a situação, a ponto de se tornar insuportável, o Mestre achou por bem recomendar a rendição, que só é aceite pelo despeitado rei de Castela, a pedido da rainha D. Beatriz, em 30 de Agosto de 1384.

Essa rendição reforça a convicção real de que Lisboa seguiria também o seu exemplo. Era só uma questão de maior pressão e persistência.

Mas os problemas do Mestre não acabam aqui. Ésujeito também a traição de D. Pedro de Castro, filho do falecido D. Álvaro Peres de Castro, conde de Arraiolos, que, quanto a nós, pode ter uma explicação diferente da constante na crónica lopeana.

É claro que o rei de Castela, estando com dificuldades para conseguir a rendição da cidade, não se importou de comprar a traição de D. Pedro e dos seus vassalos, a troco de grande quantidade de ouro e prata, garantindo a entrada inimiga pela parte da cidade posta à sua guarda, mas não podemos deixar também de considerar que o partido dos Castros, viam com muito maus olhos o distanciamento da candidatura, ao trono português, do infante D. João, e a afirmação, cada vez mais consistente, do Mestre de Avis, no palco político.

Denunciada a traição, são todos presos, em 15 de Agosto de 1384, noite combinada para colocarem uma candeia, na seteira do muro,........

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