Uma das funções dos cientistas é prever corretamente cenários futuros a partir das circunstâncias observadas no presente. No livro Um Mundo Infestado de Demónios: A Ciência como uma vela na escuridão, Carl Sagan escreveu: “Vivemos numa sociedade extremamente dependente de ciência e tecnologia, na qual pouquíssimos sabem alguma coisa sobre ciência e tecnologia. Isto é uma clara prescrição para o desastre.” Fê-lo em 1995 - há quase 30 anos, portanto! - , e a observação mantém-se hoje tão válida quanto então.

Apesar de as universidades, a nível global, estarem a “produzir” um número de engenheiros, matemáticos, físicos, etc., como nunca antes visto, a verdade é que a grande, enorme, maioria da população não tem os mais rudimentares conhecimentos científicos. Por exemplo, não é capaz de perceber a tabela periódica, tem dificuldades em descrever a constituição do átomo - afinal, aquilo de que somos todos feitos; ou, até, não sabe que a luz visível são frequências eletromagnéticas exatamente iguais ao wi-fi do seu telemóvel. E a quantidade de pessoas, mesmo com 20 e poucos anos, que acredita em astrologia apenas é sinal de que o nosso verdadeiro lugar e minúscula dimensão no Universo é algo que o Sistema de Ensino nunca foi capaz de lhes transmitir.

Para mim, se há sinal da falência do sistema universal de Educação é precisamente o facto de continuarmos a “dourar a pílula”às nossas crianças relativamente aos factos científicos - e nem falemos das questões americanas de trazer a religião para as escolas, que com o crescimento em Portugal dos evangélicos, é um risco ao virar da esquina... Já bem basta a primazia das “ciências sociais” sobre hard science nos curricula e o inenarrável programa de Educação para a Cidadania que, claro, inclui absolutamente nada sobre literacia financeira -, porque o que é mesmo ideal é usar declarações automáticas de IRS sem saber se se está a deduzir tudo o que podia ou se o Governo está a cobrar a mais.

Também isto é um reflexo da sociedade que criámos. Usando um lugar comum: colhemos o que plantamos. Mas talvez haja sinais de esperança, vindos de fora.

Desde pelo menos Júlio Verne que a boa ficção científica popular consegue o duplo propósito de fazer sonhar - ser uma forma de escapismo dos problemas do dia a dia - e interessar as pessoas por ciência e engenharia. O maior exemplo disso mesmo é a americana Mae Jemison, a primeira mulher negra astronauta, que muitas vezes referia ter-se inspirado em Nichelle Nichols, a tenente Uhura em Star Trek - O Caminho das Estrelas original, para fazer a sua carreira.

A julgar pela quantidade de (pelo menos razoavelmente) boa ficção científica disponível hoje em dia nos diversos serviços de streaming, o interesse popular por assuntos ligados à Ciência nunca esteve tão alto no mundo desenvolvido. Há produções europeias continentais relevantes (ex. o alemão The Signal, da Netflix), britânicas (The Black Mirror), chinesas (The Wandering Earth, Netflix), além das muitas americanas, na qual destaco o The Expanse (Amazon).

A mais recente adição a esta série é 3 Body Problem, da Netflix, baseado na trilogia de livros Remembrance of Earth’s Past do escritor e engenheiro informático chinês Liu Cixin. A obra - que chegou a ser citada como dos livros preferidos do então presidente dos EUA Barack Obama - reflete sobre o lugar da Humanidade no Universo, a nossa capacidade de sobrevivência no planeta, questiona de que forma, realisticamente, uma civilização extra-terrestre poderia (ou não) conviver connosco...

A adaptação da Netflix - feita por David Benioff e D. B. Weiss, que adaptaram A Guerra dos Tronos - está a ser criticada por ter “ocidentalizado” várias personagens (chinesas no original, que passaram a ser britânicas - num caso há uma que se “multiplica” em quatro) e simplificado demasiado algumas partes, tanto históricas quanto de ciência.

Quanto à primeira questão, apenas digo que os produtores sabem quem são o seu público-alvo principal. E lembro que estreou quase um ano antes Three-Body, a série chinesa que adapta o mesmo livro - disponível no YouTube com legendas em inglês. Há quem prefira, apesar da evidente pouca competência de alguns atores...

Já quanto à simplificação da ciência e da história que David Benioff e D. B. Weiss sentiram que tiveram de fazer, regressamos ao tema principal deste texto. A história de Liu Cixin inicia-se na Revolução Cultural chinesa (é a primeira cena do livro e da série) e retrata as suas atrocidades. Estas estão lá, mas um pouco en passant. Bem como todo o período histórico do livro, que é tão resumido que é risível - como se os argumentistas e produtores temessem que, se perdessem mais tempo nos Anos 50 e 60, fossem perder audiência. Algo que, provavelmente, aconteceria.

O mesmo relativamente à ciência. Praticamente tudo o que é retratado na série, tal como nos livros, é pelo menos teoricamente possível e está feito de forma realista. As explicações, no entanto, são na maioria das vezes tão pouco aprofundadas - ao contrário do que acontece no livro - que nunca se chega a perceber bem como as coisas funcionam. Quando o objetivo da obra é o inverso. Lá está! Deixar a ciência pela rama, não se vá perder audiências.

Seja como for, recomendo vivamente ver 3 Body Problem - O Problema dos 3 Corpos. Porque apesar do que não explica, está suficientemente bem-feito para nos fazer pensar sobre as grandes questões - sobre nós, o planeta, o Universo. E se tiver filhos pequenos, sugiro que veja a série com eles: esta é daquelas que pode inspirá-los a fazer Ciência. E assim, um dia, a salvar-nos de nós próprios.


Editor do Diário de Notícias

QOSHE - A importância de 3 Corpos e de outras coisas do género - Ricardo Simões Ferreira
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A importância de 3 Corpos e de outras coisas do género

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02.04.2024

Uma das funções dos cientistas é prever corretamente cenários futuros a partir das circunstâncias observadas no presente. No livro Um Mundo Infestado de Demónios: A Ciência como uma vela na escuridão, Carl Sagan escreveu: “Vivemos numa sociedade extremamente dependente de ciência e tecnologia, na qual pouquíssimos sabem alguma coisa sobre ciência e tecnologia. Isto é uma clara prescrição para o desastre.” Fê-lo em 1995 - há quase 30 anos, portanto! - , e a observação mantém-se hoje tão válida quanto então.

Apesar de as universidades, a nível global, estarem a “produzir” um número de engenheiros, matemáticos, físicos, etc., como nunca antes visto, a verdade é que a grande, enorme, maioria da população não tem os mais rudimentares conhecimentos científicos. Por exemplo, não é capaz de perceber a tabela periódica, tem dificuldades em descrever a constituição do átomo - afinal, aquilo de que somos todos feitos; ou, até, não sabe que a luz visível são frequências eletromagnéticas exatamente iguais ao wi-fi do seu telemóvel. E a quantidade de pessoas, mesmo com 20 e poucos anos, que acredita em astrologia apenas é sinal de que o nosso verdadeiro lugar e minúscula dimensão no Universo é algo que o Sistema de Ensino nunca foi capaz de lhes transmitir.

Para mim, se há sinal da falência do sistema universal de Educação é precisamente o facto de continuarmos a “dourar a pílula”às nossas crianças........

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