No Brasil, o português fala-se com açúcar, disse Eça de Queiroz, que viveu uns tempos no Rio de Janeiro. Eu acrescentaria "com café, cachaça, água de côco, sol e chuvas torrenciais". O torrencial tem alto valor simbólico das torrentes e correntes libertadoras, opressoras ou os choques formatadores entre ambas.

Passou fronteiras e hoje dos 240 milhões de pessoas que têm o português como língua materna, 210 milhões são brasileiras.

Como acontece com outras línguas, o produto local não ficou pela imitação ou aceitação de normas e estilos vindos da origem ou do passado. Criou nova música na fala e novos roteiros na escrita, sabendo que exagero em falar com eloquência vira ridículo e é pelas ruas, estradas, rios, festas, etc. que se fixam sons e sinais de comunicação geral.

É aqui que entra o sol, açúcar, café, água de côco e cachaça: cria palavras, muda palavras, determina gestos corporais, promove ritmos e segredos no ouvido. A mudança de palavras não é só comportamento brasileiro, é universal, inclusive na língua portuguesa. Brasil se pronuncia Brasiu, como em regiões de Portugal, vaca se pronuncia baca.

Mesmo assim, é comum na sociedade portuguesa considerarem que "os brasileiros falam errado", consideração também feita em pequenas camadas sociais de topo nos PALOPs, enquanto ocorre exatamente o oposto na população suburbana, sobretudo de Angola. Os mais radicais daqueles comentários chegam a dizer que "aquilo não é português". Se tiverem razão, o Brasil terá de designar sua língua nacional como Brasileira, ficando, então a Portuguesa com 30 milhões de falantes.

Há dias vi um blog brasileiro intitulado lusobrasilfonia.

O português falado no Brasil deu lugar a uma formidável base cultural, talvez a maior realização do país, responsável por representar mais de 40% da superfície sul-americana e ferramentas culturais mundialmente procuradas, como literatura, música, cinema e outras artes ou técnicas visuais. Basicamente nos 200 anos de Estado independente (na realidade um pouco menos).

Tem gente que não gosta dessas ferramentas e dessa continuidade, gerando sentimentos bipolares nas relações entre componentes da CPLP, enfraquecendo o alcance desta. A presença de 400 ou 500 mil brasileiros em Portugal dá lugar a um dos polos - rejeição. A Europa entrou em perigo de encolhimento demográfico, precisa de migrantes para manter equilíbrio de contas, mas é agressiva com os migrantes. Houve algo semelhante nos Estados Unidos em finais do século XIX e começo do XX com migrantes europeus (o trumpismo do "America first" tem longa história), não na América Latina, onde aconteceu até os imigrantes terem mais oportunidades que largas faixas da população local.

A ignorância e a discriminação nos critérios, conduz a começos de xenofobia. Assim, a queda de um governo na Europa é crise, se for no Brasil é mais uma bagunça ou, como bagunça é expressão brasileira, prova de "inferioridade". Há pouco tempo ouvi de um intelectual português - com apoio no seu círculo de amizades - em tom de ofensa, que o Brasil "é um pantanal", pensando que o Pantanal do centro-oeste brasileiro e dois países vizinhos é uma sequência de pântanos e não Patrimônio Natural Mundial e Reserva da Biosfera, pela UNESCO, cerca de 200 mil quilômetros quadrados de superfície, com três milhões de habitantes e um agro-alimentar decisivo nas trocas internacionais.

A ignorância não mata mas induz em erro. É o que se passa em algumas áreas falantes de português sobre a forma da língua no Brasil e a irradiação de vários componentes dessa forma que, no entanto, assim continuará criativamente.

Economista

QOSHE - A forma brasileira da língua - Jonuel Gonçalves
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A forma brasileira da língua

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19.12.2023

No Brasil, o português fala-se com açúcar, disse Eça de Queiroz, que viveu uns tempos no Rio de Janeiro. Eu acrescentaria "com café, cachaça, água de côco, sol e chuvas torrenciais". O torrencial tem alto valor simbólico das torrentes e correntes libertadoras, opressoras ou os choques formatadores entre ambas.

Passou fronteiras e hoje dos 240 milhões de pessoas que têm o português como língua materna, 210 milhões são brasileiras.

Como acontece com outras línguas, o produto local não ficou pela imitação ou aceitação de normas e estilos vindos da origem ou do passado. Criou nova música na fala e novos roteiros na escrita, sabendo que exagero em falar com eloquência vira ridículo e é pelas ruas, estradas, rios, festas, etc. que se fixam sons e sinais de comunicação geral.

É aqui que entra o sol, açúcar, café, água de côco e cachaça: cria palavras, muda palavras, determina gestos........

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