Com a serenidade de sempre, havia um tom de esperança na última vez que falámos. Sabíamos todos que a situação era difícil, mas como sempre aprendemos na relação com ele e ao lê-lo, havia a compreensão da importância de entender “as coisas mais simples” e de fazer de uma “cartografia de emoções”, um exercício de proximidade e de compreensão. Era um amigo sincero e um sistemático cultor da palavra e das ideias, como modo de encontrar as razões do ser. E nesse amor das palavras havia o desejo permanente da decifração dos enigmas que a vida nos reserva. “…E / não vejo o caminho para onde o destino / me leva; mas vou deixando atrás / de mim as contas que marcam o tempo / dos meus passos. Se me perder, guiar-me-ão / no regresso - com se o vento e os animais / noturnos não as espalhassem para / longe da minha vista, e cada manhã / não me afastasse, mais e mais, do pátio / da minha infância” (O Fruto da Gramática, 2014).

Nuno Júdice continua bem presente, na sua reflexão e na sua poesia. Não se pense, porém, que se trata de um lugar comum. No trabalho que desenvolveu até ao fim, na sua banca de artesão, procurou legar-nos a possibilidade de vermos melhor a herança dos poetas e pensadores. Quando em meados dos Anos 60 começou a frequentar o Centro Nacional de Cultura, onde Sophia de Mello Breyner pontuava com a sua poesia e o seu exemplo (com Gastão Cruz, Fiama Hasse Pais Brandão, Ruy Belo, Nuno Bragança ou Pedro Tamen) encontrou a pura Poesia.

“…E espero que / me digas que este poema que pôs tudo de lado quando / chegaste ao pé de mim, é um poema; e se me disseres / isso, então eu sei que é teu este poema, e o resto/ que fique para quem julga que sabe o que é, / ou não é, a poesia” (Idem).

Afinal, como Nuno disse do épico: “Importa ler Camões sem ouvir esse ruído ideológico que acaba por apagar o que subsiste de uma voz que está longe de ter esgotado a sua invenção”. E assim descobriu e desenvolveu a originalidade camoniana de considerar o Amor como vivência de contrários, e como ligação do concerto e desconcerto do mundo, do encanto e do desencanto.

Esta relação inesgotável com a poesia e a literatura foi, sem dúvida, uma das chaves da dimensão universalista da obra de Nuno, que o tornou um dos valores mais seguros e importantes da cultura portuguesa, ouvido urbi et orbi, num singular e justo reconhecimento do mundo literário internacional. O tempo por certo se encarregará, de modo natural, de demonstrar como esta “colheita de silêncios” múltipla encerra a compreensão do tempo e de quem o ocupa de forma perene.

E assim lemos com um sentimento de alegre melancolia De Sagres, uma tarde, para o Ruy Belo em Madrid. “Uma tarde, em sagres, o vento soprava sempre / por cima das falésias, saía de dentro das furnas, e voltava a meter-se em / furnas e falésias, escrevemos-te um postal, de Sagres para Madrid, do / extremo da terra ao meio da península”. Afinal “nesse tempo, em que nem era preciso pensar no que se tinha para / dizer, eu pensava na poesia”. E vem à memória Alexandre O’Neill: “A poesia é a vida? Pois claro! Embora custe caro / e a morte se meta de permeio” (No Reino da Dinamarca).

António Carlos Cortez acaba de publicar Um Canto na Espessura dos Textos - Leituras da Poesia de Nuno Júdice (D. Quixote, 2024). Lemos o percurso do poeta com júbilo e atenção. E ouvimos na primeira pessoa Nuno dizer: “O professor tem de ter consciência de que a literatura não pode desaparecer do ensino, e que é uma aberração ter separado o Português da Literatura, como se uma língua pudesse existir sem a literatura e não fosse a literatura a formá-la e a informá-la”.

Nos últimos dias, Nuno Júdice continuou o seu trabalho incansável. Terminou o último número da Colóquio-Letras, que celebra Abril, enviou-o para a impressão e deixou planeados os próximos números. Os leitores terão oportunidade nos próximos meses de verificar como a sua lucidez continua a beneficiar uma cultura livre e aberta.

QOSHE - O meu amigo Nuno - Guilherme D’Oliveira Martins
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O meu amigo Nuno

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26.03.2024

Com a serenidade de sempre, havia um tom de esperança na última vez que falámos. Sabíamos todos que a situação era difícil, mas como sempre aprendemos na relação com ele e ao lê-lo, havia a compreensão da importância de entender “as coisas mais simples” e de fazer de uma “cartografia de emoções”, um exercício de proximidade e de compreensão. Era um amigo sincero e um sistemático cultor da palavra e das ideias, como modo de encontrar as razões do ser. E nesse amor das palavras havia o desejo permanente da decifração dos enigmas que a vida nos reserva. “…E / não vejo o caminho para onde o destino / me leva; mas vou deixando atrás / de mim as contas que marcam o tempo / dos meus passos. Se me perder, guiar-me-ão / no regresso - com se o vento e os animais / noturnos não as espalhassem para / longe da minha vista, e cada manhã / não me afastasse, mais e mais, do pátio / da minha infância” (O Fruto da Gramática, 2014).

Nuno Júdice continua bem presente, na sua reflexão e na........

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