O Risorgimento italiano tem raízes muito antigas. Dante, Petrarca e Maquiavel fazem parte de um longo caminho que culminou na unificação de Itália. Entre 1815 e 1870 confrontam-se os partidários da Casa de Saboia e do rei da Sardenha e os companheiros de Mazzini e Garibaldi. A saga contada por Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896-1957) em Il Gattopardo, imortalizada por Visconti, desenha-nos o pano de fundo. A guerra patriótica contra o Império austríaco, os ecos da Primavera dos Povos de 1848, a proclamação do reino de Itália e a anexação dos Estados Pontifícios marcam um tempo que mudou o panorama europeu. Napoleão dividira a Itália em vários reinos e o Congresso de Viena deixaria a península subalternizada ao Império Austro-húngaro. O reino da Sardenha, com o conde Cavour, economicamente moderno, tornou-se a locomotiva do novo Estado, associada ao Risorgimento Letterario, que criou uma nação a partir da língua e do génio poético presentes na grande Comédia de Dante, tornada divina. A história é conhecida e até chegou a Portugal, com o trágico exílio de Carlos Aberto e a sucessão em seu filho Vítor Manuel II, pai da nossa Rainha D. Maria Pia.

Além dos clássicos, o escritor moderno que muito contribuiu para a formação da consciência italiana foi Edmondo de Amicis (1846-1908), autor de Coração, uma obra sublime. Todos os jovens italianos desde 1886 até à geração de Umberto Eco formaram-se a ler o livro de Amicis, talvez demasiado cheio de bons sentimentos, mas indiscutivelmente marcante para a formação de uma consciência cívica liberal e democrática. A obra relata, pela voz de Henrique, um ano letivo dos alunos da 3.ª Classe de uma Escola, onde se lia em cada mês uma verdadeira parábola sobre a liberdade, a generosidade, o respeito, o exemplo, o altruísmo e a salvaguarda das diferenças. O Coração, que eu li integralmente, com grande prazer, e que os meus pais me ajudaram a ler, numa experiência inesquecível com meus irmãos, foi adotado como leitura obrigatória nas escolas de Itália no final do século XIX. Daí a influência que exerceu em diversas gerações também na Europa democrática. Longe do nacionalismo que envenenou a mentalidade europeia - lembramos a carta em que se diz: "Eu amo a minha terra porque a minha mãe nela nasceu; porque o sangue que me corre nas veias é o mesmo sangue; porque na minha terra estão sepultados os mortos que a minha mãe chora e meu pai venera." A cidade, a língua, os livros que me educam, o grande povo no meio do qual vivo, a bela natureza que me cerca, tudo pertence à ideia de pátria. E as histórias contadas pelo mestre-escola ilustram a entrega e a generosidade, a abertura e a autonomia pessoal - como nos casos do pequeno patriota paduano, do pequeno vigia lombardo, do tamborzinho, da viagem dos Apeninos aos Andes - ou do sacrifício do pequeno escrevente florentino - que nas altas horas da noite ajudava, às escondidas, seu pai a realizar um trabalho árduo e repetitivo que compunha o ganha-pão familiar. "Cursava a 4.ª classe. Era um gracioso florentino de 12 anos, negro de cabelos e alvo de rosto; filho mais velho de um empregado dos caminhos de ferro que, tendo muita família e pouco ordenado, vivia com dificuldades." O filho, às escondidas, decidiu ajudar o pai a escrever endereços em cintas para enviar revistas a assinantes. Mas se o trabalho singrava, o pai não compreendia por que razão o aproveitamento do filho se ressentia, até que descobriu que tal era fruto do cansaço pela generosidade... Escritor dotadíssimo, de Amicis dá-nos exemplos de cidadania viva. A verdade é que, em vez de um discurso abstrato, há valores exemplares. Mas além dos contos mensais, há pequenos exemplos na relação entre os companheiros da turma (perante uma dificuldade, uma doença, um acidente ou uma morte) que demonstram a importância do respeito mútuo, do cuidado e da solidariedade. Eis como um livro se torna influente.

Administrador-executivo da Fundação Calouste Gulbenkian

QOSHE - Coração de Edmondo de Amicis - Guilherme D’Oliveira Martins
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Coração de Edmondo de Amicis

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26.12.2023

O Risorgimento italiano tem raízes muito antigas. Dante, Petrarca e Maquiavel fazem parte de um longo caminho que culminou na unificação de Itália. Entre 1815 e 1870 confrontam-se os partidários da Casa de Saboia e do rei da Sardenha e os companheiros de Mazzini e Garibaldi. A saga contada por Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896-1957) em Il Gattopardo, imortalizada por Visconti, desenha-nos o pano de fundo. A guerra patriótica contra o Império austríaco, os ecos da Primavera dos Povos de 1848, a proclamação do reino de Itália e a anexação dos Estados Pontifícios marcam um tempo que mudou o panorama europeu. Napoleão dividira a Itália em vários reinos e o Congresso de Viena deixaria a península subalternizada ao Império Austro-húngaro. O reino da Sardenha, com o conde Cavour, economicamente moderno, tornou-se a locomotiva do novo Estado, associada ao Risorgimento Letterario, que criou uma nação a partir da língua e do génio poético presentes na grande Comédia de........

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