Há alguns anos atrás, em Macau, numa tertúlia de amigos portugueses, estava também presente um casal de médicos australianos.

Durante o decorrer da conversa, a médica australiana queixou-se de que na Austrália trabalhava num hospital distante cerca de 1500 quilómetros da unidade hospitalar onde estava colocado o seu marido. Lamentava as poucas vezes que estava com ele, por via da distância e da profissão que ambos haviam escolhido. Inocentemente, um português que estava presente disse: "Bom, mas não há ninguém que possa ajudar nisso para que sejam colocados em hospitais mais próximos ou no mesmo hospital?"

O ar de espanto do casal de jovens médicos foi manifesto. E a resposta também: "Ajudar? Mas como? Fomos colocados pelo Ministério da Saúde?

O que quer dizer com isso de ajudar?" A conversa, em inglês, não foi fácil porque os jovens médicos não entendiam o que o português queria dizer com "ajuda"! Não estava no seu ADN cultural essa coisa de ajuda fora do funcionamento das instituições.

Como todos sabemos, em Portugal, a cunha, o jeitinho, o empurrãozinho, a ajudinha, fazem parte da nossa matriz cultural. Não conseguimos (alguns) viver sem a utilização dessa bengala cultural e social. Isto acontece, muitas vezes, porque as instituições não funcionam, ou funcionam mal, ou os sistemas operativos da administração estão bloqueados por excesso de serviço ou problemas financeiros.

Tudo isto vem a propósito do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa. Será que o Presidente da República terá usado, (alegadamente), a cunha para desenrascar os amigos do seu filho? Não sabemos! Talvez a continuidade da cobertura mediática da história nos possa vir a esclarecer isso e, igualmente, o papel que o Governo desempenhou em todo este processo.

A questão que se coloca é se o Presidente deveria ter tratado o problema de saúde das gémeas que era do conhecimento do seu filho com os mesmos procedimentos administrativos que faz com os inúmeros pedidos de gente aflita que lhe caem no gabinete. Ou, pelo contrário, devia ter dito ao filho

qualquer coisa do estilo: "Oh meu querido filho diz lá aos teus amigos para se dirigirem, directamente, ao Ministério da Saúde", porque dada a nossa relação familiar isso pode ser mal-entendido pelo país"".

Mas não foi isso que Marcelo fez e temos aí mais um problema institucional e um processo aberto "contra terceiros".

Tal como noutros aspectos que maculam a sociedade portuguesa, quem tem de estar na linha da frente do combate à cunha e quejandos são as instituições e seus líderes políticos. Se houvesse rigor, tolerância zero, se as instituições funcionassem como deviam, seguramente que a cunha acabaria por não ser necessária.

Claro que não fica bem à consciência nacional ver a resolução de processos administrativos em escassos dias, quando eles demoram meses ou mesmo anos para o comum dos mortais.

Naturalmente, que ao gastarem-se quatro milhões de euros do nosso depauperado SNS, tudo tem de estar muito bem explicado e justificado.

Como é admissível esta situação, quando temos vias verdes coronárias fechadas por falta de médicos e urgências hospitalares em falência. Como se pode admitir o acesso a uma consulta médica hospitalar num prazo temporal curto, quando o anónimo cidadão, por vezes, tem de esperar um ano, ou mesmo mais, por uma consulta médica.

Tudo isto cheira a terceiro mundismo, a subdesenvolvimento, a um país que tarda em se modernizar, em se tornar independente de velhos hábitos herdados do passado. Infelizmente estamos ainda longe da matriz cultural do casal de médicos australianos. E, pelo que parece, esta atitude presidencial e governamental pouco fizeram para que possamos, um dia, atingir esse patamar cultural.

Jornalista

QOSHE - O casal de médicos australianos e a cunha - António Capinha
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O casal de médicos australianos e a cunha

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08.12.2023

Há alguns anos atrás, em Macau, numa tertúlia de amigos portugueses, estava também presente um casal de médicos australianos.

Durante o decorrer da conversa, a médica australiana queixou-se de que na Austrália trabalhava num hospital distante cerca de 1500 quilómetros da unidade hospitalar onde estava colocado o seu marido. Lamentava as poucas vezes que estava com ele, por via da distância e da profissão que ambos haviam escolhido. Inocentemente, um português que estava presente disse: "Bom, mas não há ninguém que possa ajudar nisso para que sejam colocados em hospitais mais próximos ou no mesmo hospital?"

O ar de espanto do casal de jovens médicos foi manifesto. E a resposta também: "Ajudar? Mas como? Fomos colocados pelo Ministério da Saúde?

O que quer dizer com isso de ajudar?" A conversa, em inglês, não foi fácil porque os jovens médicos não entendiam o que o português queria dizer com "ajuda"! Não estava no........

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