Há mais de meio século que a Sociologia cunhou o conceito de direito à cidade. O direito à cidade significa que a vida urbana é um privilégio do qual qualquer pessoa deve poder usufruir.
Ao longo do tempo, a ideia do direito à cidade foi-se ampliando, abrangendo diferentes aspetos da vida urbana, como a garantia de habitação condigna, o acesso generalizado a serviços públicos, mas sobretudo a possibilidade de qualquer cidadão poder participar nas estratégias de planeamento do espaço urbano de acordo com as suas necessidades e aspirações. A partir desta perspetiva, a cidade não é apenas concebida como um espaço físico, mas também como um domínio imaterial, feito de relações de poder, práticas sociais e dinâmicas políticas.
Em boa medida, essa dimensão imaterial molda a dimensão física do espaço urbano. Uma cidade caraterizada por relações de poder relativamente igualitárias e ampla participação cívica será, mais provavelmente, uma cidade com serviços, infraestruturas e espaços públicos inclusivos. Num contexto teórico, de perfeita democracia local, todos os cidadãos teriam a possibilidade de participar na construção e transformação da cidade, assim como de usufruir plenamente dos seus diversos lugares.
Na coluna anterior (publicada a 20 de janeiro), discutimos as deficiências dos mecanismos de participação em Coimbra. Vale a pena, agora, ampliar essa discussão para analisar como a falta de participação se reflete nas desigualdades no acesso ao espaço físico.
Olhemos para exemplos simples do nosso quotidiano. Devido à falta de manutenção, a condição precária dos acessos à ponte pedonal Pedro e Inês, no coração do Parque Verde, dificulta significativamente o trânsito a pessoas com mobilidade reduzida. Para este grupo de cidadãos, a ponte é um espaço de acesso interdito. Por razões semelhantes, esse mesmo grupo tem também acesso interdito a outros espaços emblemáticos de Coimbra. A panorâmica Couraça de Lisboa, uma das ruas que liga a baixa à alta da cidade, da qual todas as pessoas deveriam poder usufruir, é apenas privilégio de alguns. A falta de passeios, o seu estado precário, a sua obstrução sistemática pelo estacionamento abusivo e impune, a inoportuna instalação de contentores de resíduos nos espaços que já são estreitos à circulação pedestre, a falta de rampas de acesso para cadeiras de rodas ou carrinhos de bebé, a má sinalização das passadeiras ou a curta duração de muitos semáforos pedonais impõem barreiras físicas intransponíveis a muitos conimbricenses (pessoas portadoras de deficiência, idosos com dificuldades de locomoção, entre outros). Vítimas da assimetria na distribuição de poder e sem mecanismos eficazes para fazer valer o seu direito à cidade (além da reclamação sem efeitos garantidos), um grupo significativo de concidadãos continuará a habitar numa Coimbra que lhes é parcialmente interdita.

QOSHE - Cidade interdita - Ana Raquel Matos
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Cidade interdita

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26.02.2024

Há mais de meio século que a Sociologia cunhou o conceito de direito à cidade. O direito à cidade significa que a vida urbana é um privilégio do qual qualquer pessoa deve poder usufruir.
Ao longo do tempo, a ideia do direito à cidade foi-se ampliando, abrangendo diferentes aspetos da vida urbana, como a garantia de habitação condigna, o acesso generalizado a serviços públicos, mas sobretudo a possibilidade de qualquer cidadão poder participar nas estratégias de planeamento do espaço urbano de acordo com as suas necessidades e aspirações. A partir desta perspetiva, a cidade não é apenas concebida como um espaço físico, mas também como um domínio imaterial, feito de relações de poder, práticas........

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