Ao longo da história, há bastantes exemplos de acontecimentos que, cobertos por sombras, só o tempo e o distanciamento vieram a permitir explicar. Viremos também nós a compreender, mais tarde, verdadeiramente o que se passou na sucessão que levou ao fim do governo do PS. Com base em factos, deixando para trás opiniões de milhentos comentadores, dos media e das redes sociais, inquinados por comportamentos clubísticos.
Entretanto, as opções políticas manifestadas conduziram-nos a uma situação estranha, em que verdadeiramente não houve vencedor. A diferença entre a coliga- ção AD e o PS foi de apenas 1.552 votos obtidos. Certamente que se ganha por um voto apenas, e por isso Luís Montenegro foi indigitado pelo Presidente da República. Á esquerda, não foram de forma alguma capitalizadas as intervenções agressivas do Bloco de Esquerda em sede do Parlamento, nem tão pouco a luta na rua tão da preferência do Partido Comunista. Marcada cada vez mais por movimentos não controlados pelos sindicatos tradicionais, classes profissionais com lideranças mais fortes e sem qualquer transparência, invadiram as ruas, e elevaram as suas exigências dificultando ou mesmo impossibilitando processos de negociação efetiva. As ameaças externas, políticas e como sempre económicas, conjugaram-se no quadro de um ciclo político tradicional: dois anos para amealhar, dois anos para executar. O governo PS, enredado nesta lógica política tradicional e numa prática de substituição de quadros de topo, também não percebeu os ventos da história.

São assim os ciclos: 50 anos após o 25 de Abril, o país mudou. Colocou-se de vez na fileira das políticas mais conservadoras, e cerca de um milhão de pessoas exprimiram o seu apoio ao Chega. É apenas o princípio? É provável que sim.
A eleição do Presidente da Assembleia de República marcou um primeiro ato destes estranhos tempos. O PSD tem uma longa experiência de governação, quase sempre marcada pela arrogância. Não fará facilmente acordos, como não compreendeu desde logo que a estabilidade governamental vai passar necessariamente por processos de negociação muito bem conduzidos. É a AD o Governo, a eles compete preparar os processos e sinalizar os resultados pretendidos. A preparação séria é fundamental, não a trapalhada que se revelou ontem; não se trata de informar os outros “eu quero isto”, mas de mapear interesses comuns, trocar informações e formular opções que possam conduzir a compromissos válidos que sejam respeitados. Seja com o Chega, com o PS ou com qualquer outro partido. Quem precisa do acordo, é quem terá de correr para o obter – e neste caso é a AD.
A atração por acordos secretos é grande, até porque a AD se declarou contra o seu estabelecimento com o Chega. Acordos secretos, note-se, podem ser por escrito e assinados, mas na maioria dos casos resultam de encontros informais, meras conversas e trocas de informações ou desejos. Mas a economia industrial, que analisa comportamentos empresariais, prova que este tipo de acordos é muito instável, e ganha sempre quem o viola. Vimos um caso desses já esta semana…

Aparentemente, a estratégia que o novo governo se prepara para implementar não é essa. Evitando e torneando o Parlamento, manifestou já a vontade de governar tanto quanto possível através de decretos. E quem não gostar, diz-se, deverá elaborar propostas alternativas e levá-las para discussão na Assembleia da República. Que é como quem diz, quem não gostar, que tire bilhete e vá para a fila…
O problema é seguramente meu: nasci no dealbar da década de 50. Na escola primária, uma professora bem simpática, com comportamento de avó, colocava-nos todos os dias a iniciar as aulas com a saudação nazi. Afortunada porque o meu pai era médico, ainda assim a vivência numa aldeia do interior mostrou-me a pobreza do país e a inacessibilidade da larga maioria à saúde e à educação. Pelos anos que se seguiram, ficou-me a memória de um país de silêncios e informadores, mais tarde já na faculdade, do medo da guerra presente nos olhos dos meus colegas. Fui transportada de um mundo fechado, analógico, a preto e branco, para o tempo da globalização, da internet e da robotização.

Termino esta breve crónica sem saber a constituição do Governo. Nestes tempos complexos, herda problemas, mas também condições muito favoráveis. Espero que consiga fazer acordos que tragam estabilidade, e que resista a tornar o Parlamento despido na prática das suas competências.
Em nome da minha neta.

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“Negociações e Acordos ”

8 0
29.03.2024

Ao longo da história, há bastantes exemplos de acontecimentos que, cobertos por sombras, só o tempo e o distanciamento vieram a permitir explicar. Viremos também nós a compreender, mais tarde, verdadeiramente o que se passou na sucessão que levou ao fim do governo do PS. Com base em factos, deixando para trás opiniões de milhentos comentadores, dos media e das redes sociais, inquinados por comportamentos clubísticos.
Entretanto, as opções políticas manifestadas conduziram-nos a uma situação estranha, em que verdadeiramente não houve vencedor. A diferença entre a coliga- ção AD e o PS foi de apenas 1.552 votos obtidos. Certamente que se ganha por um voto apenas, e por isso Luís Montenegro foi indigitado pelo Presidente da República. Á esquerda, não foram de forma alguma capitalizadas as intervenções agressivas do Bloco de Esquerda em sede do Parlamento, nem tão pouco a luta na rua tão da preferência do Partido Comunista. Marcada cada vez mais por movimentos não controlados pelos sindicatos tradicionais, classes profissionais com lideranças mais fortes e sem qualquer transparência, invadiram as ruas, e elevaram as suas exigências dificultando ou mesmo impossibilitando processos........

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