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Há histórias que ouvi tantas vezes na minha infância, que eu embaralho algumas delas, misturo personagens, erro datas etc., o que as transforma em narrativas imaginativas. Uma dessas histórias envolve dois conhecidos do meu avô, cujos nomes eu não me lembro, mas vou chamar um de Gil, que significa “astuto”, “esperto” e o outro de Buono.

Segundo a estória, Gil era um bom pai e marido amoroso, além de querido por toda família. Contudo, ele não teve muito sucesso nos negócios, por isso morava na casa dos sogros, o que não impunha nenhum constrangimento, naquela época as famílias eram solidárias, colaborativas e fraternas; era um tempo de pouca competição, comparações e cobranças desmedidas, tempo em que as pessoas se visitavam para conversar e não para “tirar fotos” e postar no Instagram.

Os genros, Gil e Buono, ouviram respeitaram a vontade do sogro e, quando da morte do idoso, a casa, modesta, seguiu sendo moradia de Gil e sua família; combinam também que Gil que pagaria “a meia casa, quando Buono precisasse”; Buono jamais desrespeitaria a vontade do sogro, confiava no concunhado, de quem ele era compadre e amigo, e tinha sua própria casa (mulheres não participavam dessas decisões, até 1962 mulheres precisavam de autorização dos pais ou dos maridos até para trabalhar).A casa foi transferida para Gil, a vida continuou, seus filhos e filhas se casaram, netos nasceram e a amizade entre eles seguia forte e parecia inabalável; uma tarde, passados alguns anos do falecimento do sogro, Gil e Buono conversavam enquanto tomavam um cafezinho “passado na hora” e esperavam chegar o bolo de fubá com erva doce, o favorito deles; falavam de política (Buono era ferrenho opositor da ditadura militar, e Gil simpático ao arbítrio, divergência substantiva que rendia alguns debates); foi nesse dia que Buono, bastante constrangido, como se fosse ele o devedor, perguntou ao cunhado: “Gil, você pode pagar uma parte do valor da casa?” (ele pretendia dar a entrada numa “casinha” para a filha que estava “de casamento marcado”). Meu avô, que os conhecia bem, dizia: “se o Gil tivesse dito apenas: ‘não posso’, nada teria mudado entre eles”, pois Buono era bom e generoso, mas Gil disse: “Buono, deixe isso para lá, a casa já está no meu nome, não devo nada para você”; ao ouvir tal ignomínia, Buono sequer terminou de tomar o café que já estava na xicara, levantou-se, chamou a esposa, deu um beijo na sobrinha e afilhada, despediu-se com polidez e nunca mais voltou a conversar com os cunhados.

Com ou sem dores, a vida segue.

Numa manhã qualquer, Buono, leitor voraz do CORREIO e Diário do Povo, deparou-se com um edital convocando interessados para a compra de um imóvel em leilão judicial em razão de dívida com um banco, daqueles que não existem mais; era o imóvel objeto da cizânia (os imóveis residenciais não eram considerados impenhoráveis na época).

Buono leu o edital, leu novamente e tomou uma decisão, a compartilhou com a esposa; vestiu seu terno cinza, mas não colocou gravata, e foi até o banco credor e quitou o débito; voltou para sua casa e pediu que a esposa combinasse um lanche com Gil e sua família, o que foi feito.

Os concunhados reencontraram-se envoltos em algum constrangimento e seguiram do ponto em que haviam parado anos antes: café da xicara (dessa vez o bolo de fubá já estava na mesa, ainda quentinho).

Falaram dos filhos, dos netos, de política, era vigente o AI-5; falaram de futebol, a Ponte Preta acabava de tornar-se campeã paulista da Primeira Divisão, equivalente à atual Série A2; olharam fotografias, registros preciosos de uma convivência fraterna que havia sido interrompida pelas razões que já contei ao leitor.

No momento da despedida, quando estavam todos no portão, Buono teria dito: “Gil, estava me esquecendo... Quitei a sua dívida com o banco, aqui está o termo de quitação e a sub-rogação”; Gil ficou com as pernas geladas, imaginou o pior, mas quando olhou o documento viu que, apesar de constar que o “pagador” foi Buono, a sub-rogação tinha como favorecida a filha de Gil, afilhada de Buono.Buono disse a Gil: “Esta casa é um presente para minha afilhada; agora você nos deve uma casa e meia, espero que você honre a vontade do nosso sogro”; Gil chorou copiosamente, disse que nunca teve condições financeiras para pagar o que devia e desculpou-se; nesse instante Gil recebeu inesperado e fraterno abraço de Buono; depois desse dia as famílias voltaram a conviver fraternalmente, a dívida foi perdoada e nunca mais falou-se sobre o assunto. Sempre que lembro dessa história eu a coloco em perspectiva e concluo que o que falta ao nosso tempo não é apenas justiça, mas principalmente verdade e generosidade.Vivemos um tempo tomado pelo individualismo e pela competição, onde a vitória alheia significa uma derrota de alguém, onde nada se justifica sem compensação, onde as relações de barganha entre as pessoas e de ganho constante são a tônica, e a necessidade de “ter cada vez mais” faz parte do cotidiano.E, quando penso na “generosidade” do Buono, me vem à mente o filósofo André Comte Sponville, que me foi apresentado pela Celinha; ele sustenta que, dentre as virtudes, a generosidade é a mais nobre delas justamente por ser a virtude que se fundamenta na falta de interesse em qualquer retribuição pelo agir; ela é um ato da vontade que basta por si só e possui um caráter libertário que torna o indivíduo senhor de si, justamente porque “ser generoso é saber-se livre para agir bem e querer-se assim”, é agir sem estar impelido por seus interesses e afetos, caso contrário, ao agir diferente, o indivíduo será é prisioneiro destes desejos e sentimentos.Meu avô concluía dizendo: “o que deve nos mover é o amor e a, somente eles nos fazem pessoas generosas”.

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QOSHE - Nem "meia casa", nem "casa e meia" - Pedro Benedito Maciel Neto
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Nem "meia casa", nem "casa e meia"

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27.01.2024

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Há histórias que ouvi tantas vezes na minha infância, que eu embaralho algumas delas, misturo personagens, erro datas etc., o que as transforma em narrativas imaginativas. Uma dessas histórias envolve dois conhecidos do meu avô, cujos nomes eu não me lembro, mas vou chamar um de Gil, que significa “astuto”, “esperto” e o outro de Buono.

Segundo a estória, Gil era um bom pai e marido amoroso, além de querido por toda família. Contudo, ele não teve muito sucesso nos negócios, por isso morava na casa dos sogros, o que não impunha nenhum constrangimento, naquela época as famílias eram solidárias, colaborativas e fraternas; era um tempo de pouca competição, comparações e cobranças desmedidas, tempo em que as pessoas se visitavam para conversar e não para “tirar fotos” e postar no Instagram.

Os genros, Gil e Buono, ouviram respeitaram a vontade do sogro e, quando da morte do idoso, a casa, modesta, seguiu sendo moradia de Gil e sua família; combinam também que Gil que pagaria “a meia casa, quando Buono precisasse”; Buono jamais desrespeitaria a vontade do sogro, confiava no concunhado, de quem ele era compadre e amigo, e tinha sua própria casa (mulheres não participavam dessas decisões, até 1962 mulheres precisavam de autorização dos pais ou dos maridos até para trabalhar).A casa foi transferida para Gil, a vida continuou, seus filhos e filhas se casaram, netos nasceram e a amizade entre eles seguia........

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