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Eu nunca fui muito bom em nenhum esporte, me falta talento, mas, como era esforçado nunca fui o último escolhido no “par ou ímpar” (método usado para escolher os jogadores de cada time par “dar jogo”; funcionava assim: os dois melhores tiraram par ou ímpar e iam escolhendo, ser o último a ser escolhido era a suprema humilhação).

Algumas vezes um menino melhor era preterido por um dos “escolhedores”, que escolhia o amigo, o irmão ou o primo, que não era tão bom, ou seja, nepotismo desde os campinhos.

Volto ao tal talento, dom ou inspiração divina, acredito no que disse William Faulkner, Nobel de Literatura em 1949, “Inspiração? Não sei nada a respeito da inspiração, porque não sei o que é. Ouvi falar a respeito dela, mas nunca a vi”. Certamente existem pessoas altamente talentosas, que vivem sem trabalhar, mas acredito que, como regra, a maioria de nós tem algum sucesso porque alia o talento ao trabalho, ao esforço. A frase “10% de inspiração e 90% de transpiração”, atribuída muita gente, é verdadeira e deve ser levada em conta, afinal, a vida é um caminhar, não um momento de iluminação; não se vive a vida sem maiores esforços, quem pensa dessa forma vive uma crença boba e alienante, que camufla o trabalho como a vontade consciente, objetiva, organizada, sistemática e vital de fazer, pensar e criar.

Os resultados válidos que alcançamos na nossa caminhada decorrem das oportunidades (que apenas uma minoria tem), do trabalho, da humildade e das relações fraternas e solidárias; não estou fazendo apologia da meritocracia, longe disso, estou dizendo que não nos basta talento, pois, a falta dele podemos compensar com esforço, com suor, desde que tenhamos oportunidades, sem oportunidades são inúteis o talento e o esforço.

Mas e as bolinhas de gude, onde entram nisso? Bem, eu não sabia jogar bolinhas de gude, ao contrário do meu primo Serginho que era craque eu não tinha bolinhas para treinar e não sabia direito as regras, mas um dia essa história mudou.

Aprendi a jogar bola de gude com o Beto, primo da minha avó Maria, filho da tia Letícia Pezzin Demonte (portanto, minha tia-bisavó); aprendi que há várias formas de jogar, que o objetivo é “matar” as bolinhas dos adversários, utilizando os dedos polegar e indicador para empurrar a bola de gude na terra e atingir o maior número de bolas dos outros participantes; que ganha o jogo quem conseguir ficar com mais bolas.

Não conheci minhas bisavós ou bisavôs, mas convivi com essa tia-bisavó e seu marido o tio Pedro Demonte (ele era uma celebridade no bairro pois era dono do time de futebol e fundador do clube da boccia ou bocha; a italianada do Taquaral e da Vila Nova ainda são apaixonados pela Bocha, que hoje é esporte paralímpico); eles moravam aqui em Campinas, no Taquaral, na Rua Azarias de Melo, quase na esquina da avenida Nossa Senhora de Fátima; a casa era simples e as janelas davam para a calçada.

Quando chegávamos na casa da tia Leticia batíamos palmas e éramos recebidos com sorrisos e abraços pela tia Leticia e pela sua filha Cida, irmã do Beto; enquanto os adultos conversavam na copa e preparavam o lanche eu desbravava o quintal; era um terreno enorme, cheio de surpresas e aventuras; era comum as casas terem hortas bem cuidadas, árvores frutíferas e lá haviam pés de manga, abacate, jabuticaba, pitanga, laranja, limão e jaca; mas o que eu gostava mesmo era ir até a edícula que ficava escondidinha atrás das enormes jabuticabeiras, pois lá estavam os guardados do Beto, organizados dentro de caixas e de latas de vários tamanhos, eu revirava tudo, certo de que estava protegido pelas jabuticabeiras; descobri dentro de uma lata vermelha, de tamanho médio, dezenas de multicoloridas bolinhas de gude e de vários tamanhos.

Numa das vezes que eu estava na edícula mexendo nas caixas, o Beto chegou pé ante pé e me surpreendeu; eu fiquei com medo, pois, antigamente, uma criança não podia fazer nada sem expressa autorização dos pais; para meu alivio ele apenas sorriu e perguntou se eu gostava de jogar gude; eu disse: “eu não sei jogar direito”; sem falar nada ele pegou um galho de árvore, desenhou um triângulo no chão e começou a me ensinar a técnica e as regras, não sei quanto tempo ficamos ali sentados no chão...

Lá pelas tantas a tia Leticia nos chamou para o lanche, guardamos tudo nas caixas e latas e atendemos o chamado; café, leite, suco da fruta da estação, manteiga e queijo branco - ambos produzidos por ela -, pão feito em casa, uma rosca doce bem fofinha e um de fubá, tudo simples, mas farto.

Eu conhecia bem o protocolo das visitas, sabia que após o lanche iriamos embora; então pensei: “quando será que vamos voltar para eu poder jogar gude um pouco mais?”; de fato, poucos minutos após terminarmos o lanche e a louça ser lavada, estávamos no portão; beijo para lá, beijo para cá, abraços, além da infalível frase “voltem mais vezes”; então, de repente, o Beto, de quem já havíamos nos despedido dentro de casa, vai ao nosso encontro e pergunta à minha vó: “Maria, posso dar um presente ao Pedrinho?”, ela assentiu e ele me deu de presente a lata com as bolinhas de gude, um dos tesouros de infância que ele guardava com tanto zelo, foi um momento mágico.

Com esse fato aprendi o poder da generosidade e da oportunidade, a primeira é virtude divina e transcende a justiça, afinal, dá ao outro também o que ele precisa, e que sem a segunda não há talento que prospere; a generosidade do Beto me deu oportunidade de me tornar um ótimo jogador de bolinhas de gude e de vencer o meu primo.

e.t. sempre admirei a habilidade e coragem do Serginho, meu primo, ele era capaz descer “a toda velocidade” qualquer rua com seu carrinho de rolimã, sem temer nada, nem ninguém; seu anjo da guarda trabalhou muito naquele tempo e, creio, não pode se aposentar, pois meu primo atualmente pilota seu Troller Amarelo em ralis pelo mundo, mas no gude ele perde.

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As bolinhas de gude e o mito da meritocracia

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10.12.2023

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Eu nunca fui muito bom em nenhum esporte, me falta talento, mas, como era esforçado nunca fui o último escolhido no “par ou ímpar” (método usado para escolher os jogadores de cada time par “dar jogo”; funcionava assim: os dois melhores tiraram par ou ímpar e iam escolhendo, ser o último a ser escolhido era a suprema humilhação).

Algumas vezes um menino melhor era preterido por um dos “escolhedores”, que escolhia o amigo, o irmão ou o primo, que não era tão bom, ou seja, nepotismo desde os campinhos.

Volto ao tal talento, dom ou inspiração divina, acredito no que disse William Faulkner, Nobel de Literatura em 1949, “Inspiração? Não sei nada a respeito da inspiração, porque não sei o que é. Ouvi falar a respeito dela, mas nunca a vi”. Certamente existem pessoas altamente talentosas, que vivem sem trabalhar, mas acredito que, como regra, a maioria de nós tem algum sucesso porque alia o talento ao trabalho, ao esforço. A frase “10% de inspiração e 90% de transpiração”, atribuída muita gente, é verdadeira e deve ser levada em conta, afinal, a vida é um caminhar, não um momento de iluminação; não se vive a vida sem maiores esforços, quem pensa dessa forma vive uma crença boba e alienante, que camufla o trabalho como a vontade consciente, objetiva, organizada, sistemática e vital de fazer, pensar e criar.

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