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Um brasileiro, com um relacionamento longo e intenso com a Argentina, tem uma reação particular às eleições argentinas.

Em primeiro lugar, uma reação de surpresa. Diferente da reação que teve à eleição de Bolsonaro como presidente do Brasil. Isto foi possível como resultado de um processo de lawfare, uma ruptura golpista do processo institucional, que começou com o impeachment de Dilma Rousseff, e agora todos os órgãos legais afirmam que Dilma é inocente. Enquanto, naquela época, o presidente do Tribunal Supremo Eleitoral presidiu a reunião do Senado que decretou o impeachment de Dilma.

A condenação e prisão de Lula ocorreram como uma continuação da guerra jurídica e do golpe contra os governos do PT. Bolsonaro conseguiu se tornar presidente como resultado desse processo, que incluiu o impedimento de Lula de ser candidato e sua prisão.

Se Lula não estivesse preso, impedido de ser candidato, Bolsonaro não teria se tornado presidente do Brasil.

Fomos surpreendidos pelo impeachment de Dilma e pela nossa incapacidade de mobilizar o povo que teria evitado tudo isso. Não foi gerada uma consciência democrática – ao lado da forte consciência social responsável pelas eleições dos governos petistas – que pudesse ter evitado a ruptura abrupta do governo Dilma e da democracia.

O que nos surpreende agora na Argentina? Não se trata de discutir o que há de comum entre Bolsonaro e Milei. Concordamos que, como fenômeno, podem ser igualados, para além das distinções secundárias.

A primeira coisa que surpreende é a dificuldade de imaginar que na Argentina, país conhecido pelo alto nível de politização, tenha uma força política incomparável em outros países do continente, como o peronismo. Que tem, ao mesmo tempo, aquele que é provavelmente o movimento sindical mais forte da América Latina.

Estava amplamente estabelecido, dentro e fora da Argentina, que este seria um obstáculo difícil de superar para uma solução de extrema direita. Houve quem previsse que não havia como Milei vencer.

Mas ela veio. Tanto as condições de vida da população – base das críticas aos governos e ao Kirchnerismo, em particular – quanto o antiperonismo histórico, atualizado como anti-Kirchnerismo, foram subestimados.

A primeira traduziu-se em hiperinflação e em 44% da população vivendo abaixo da linha da pobreza. A segunda, no nível de rejeição aos líderes políticos peronistas, como o de Cristina Kirchner.

A reação de surpresa é a reação de alguém que não tem condições de compreender um fenômeno. Neste caso, que tipo de sujeito como Milei conseguiu triunfar sobre um candidato apoiado pelo peronismo e se tornar presidente da Argentina, com as declarações que fez e as propostas que fez.

Mas foi assim e por uma diferença significativa – cerca de 11 pontos.

Para surpresa geral, a Argentina elegeu um presidente como Milei. Ele só consegue ter três presidentes sul-americanos em sua posse – os do Paraguai, Uruguai e Chile.

As relações com o Brasil entram em uma nova fase. Historicamente, as relações entre os dois países foram de adversidade, de rivalidade, inspiradas no futebol, em que um faz de tudo para ganhar e o outro para perder.

Esse longo período terminou com o abraço histórico entre Nestor e Lula, indo juntos à posse de Tabaré Vazques, em 2005, que deu início ao longo e fundamental processo de integração latino-americana. As estreitas relações entre os dois países continuaram com os governos de Dilma Rousseff e Cristina Kirchner.

Mais tarde, o presidente da Argentina, Alberto Fernandez, interrompeu a campanha eleitoral para visitar Lula na prisão em Curitiba. Um gesto que demonstrou como, para além das acusações, foram mantidas as relações entre os dois países.

Iniciou-se um segundo período de relações políticas entre os dois países, que perdurou ao longo do século XXI e foi o período de relações mais próximas e fraternas. Até a Copa do Mundo no Brasil, a grande maioria eram torcedores da Alemanha – que havia nos derrotado por 7 a 1 – contra a Argentina. Mas na Copa do Mundo a Argentina venceu, e a grande maioria dos brasileiros eram torcedores dos nossos irmãos e vizinhos.

As últimas eleições presidenciais argentinas abriram um terceiro período nas relações entre os dois países, ao qual já estávamos habituados. Ter o presidente mais querido que já tivemos se ofendeu com o candidato a presidente da Argentina. Têm a promessa de corte de relações económicas, entre outras perspectivas de relações muito conflituosas.

Dói-nos muito ver um país tão querido, que visitamos com tanta frequência e com tanto prazer, ser entregue a uma personagem aliada ao Bolsonaro. Sabendo que, pelo menos por razões económicas, as relações não serão tão conflituosas.

Dói-nos muito que os argentinos estejam apenas a entrar num período muito difícil e de grande sofrimento, contra o qual não podemos fazer muito.

Mas já na inauguração. Brasil e Argentina, países cujos novos presidentes sempre fazem a primeira viagem um ao outro, viram esse gesto quebrado, com o novo presidente argentino viajando para os EUA. E o presidente de um país não vai à posse de outro.

É muito difícil para nós habituarmo-nos a esta situação que dura quatro anos. No fundo não aceitamos que este novo período seja tão longo, apoiamos a Argentina e o Brasil.

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Um brasileiro frente ao novo governo argentino

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06.12.2023

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Um brasileiro, com um relacionamento longo e intenso com a Argentina, tem uma reação particular às eleições argentinas.

Em primeiro lugar, uma reação de surpresa. Diferente da reação que teve à eleição de Bolsonaro como presidente do Brasil. Isto foi possível como resultado de um processo de lawfare, uma ruptura golpista do processo institucional, que começou com o impeachment de Dilma Rousseff, e agora todos os órgãos legais afirmam que Dilma é inocente. Enquanto, naquela época, o presidente do Tribunal Supremo Eleitoral presidiu a reunião do Senado que decretou o impeachment de Dilma.

A condenação e prisão de Lula ocorreram como uma continuação da guerra jurídica e do golpe contra os governos do PT. Bolsonaro conseguiu se tornar presidente como resultado desse processo, que incluiu o impedimento de Lula de ser candidato e sua prisão.

Se Lula não estivesse preso, impedido de ser candidato, Bolsonaro não teria se tornado presidente do Brasil.

Fomos surpreendidos pelo impeachment de Dilma e pela nossa incapacidade de mobilizar o povo que teria evitado tudo isso. Não foi gerada uma consciência democrática – ao lado da forte consciência social responsável pelas eleições dos governos petistas – que pudesse ter evitado a ruptura abrupta do governo Dilma e da democracia.

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