E eis que, de repente, Pedro Passos Coelho se solta. Depois de anos de meia reclusão e de gestão de silêncios, o antigo primeiro-ministro afirmou, em entrevista à Rádio Observador, o seu “direito de dizer alguma coisa, de vez em quando [sublinhado nosso]”. Passos Coelho quase nada disse, desde 2017, mas a sua simples rara presença em eventos públicos prestou-se sempre a múltiplas leituras políticas. Reserva da direita, figura supostamente capaz de federar aquela área política, Passos tentou seguir as pisadas de Cavaco Silva e até parece que ambos leram Tácito: “O distanciamento aumenta o prestígio.” Mas enquanto o ex-Presidente da República pautou a sua intervenção cívica com periódicos artigos arrasadores, Passos (que também já escreveu) parece preferir intervenções avulsas, mais ou menos improvisadas. Em comum, a parcimónia da gestão da palavra robustece o seu impacto. Mas em três intervenções quase consecutivas, o célebre discurso na apresentação de candidatos da AD, no Algarve, onde muitos viram uma opção de aproximação ao Chega, a apresentação do livro Identidade e Família, onde se lhe detetaram laivos de ultramontanismo – aliás, pouco coerentes com a sua prática de vida e em contraste com posições anteriormente assumidas – e, agora, a entrevista ao Observador, talvez a primeira desde que abandonou a política ativa, ei-lo de volta.

Nesta intervenção, Passos acaba por desopilar. Faz declarações que há muito lhe estavam atravessadas na garganta e aproveita para disparar em todas as direções, acabando por ajustar contas com Luís Montenegro, Paulo Portas e, até, Cavaco Silva. Já sabíamos que Passos discordava da estratégia do PSD, nomeadamente, da “política” do “não é não”, relativamente ao partido de André Ventura. Já desconfiávamos de que ele andava sentido com a progressiva negação – como as de São Pedro?… – de Montenegro relativamente aos tempos do “governo da Troika”. E também constatáramos que Passos e Cavaco se dão mal desde 1990, ou seja, quando um era líder da JSD e o outro era primeiro-ministro. Mais, tínhamos visto que Paulo Portas, no governo de ambos, foi sempre contracorrente às determinações da Troika – e até tinha, no Largo do Caldas, sede do CDS, um relógio, em contagem decrescente, até ao fim do chamado “programa de ajustamento”. Só que, agora, Passos tudo vem dizer, com todas as letras e cores garridas. E se, relativamente a Cavaco, se limita a concluir que, por vezes, o ex-Presidente mais desajudou do que ajudou o seu governo, ou que Montenegro se tem afastado da herança desse mesmo governo, a forma como tratou Paulo Portas é verdadeiramente letal: “A Troika não confiava em Paulo Portas [leia-se, ele não era de confiança], e fui eu que, obrigando o ministro das Finanças a assinar uma carta conjunta comigo e com Portas, o salvei de uma humilhação perante a Troika, que apenas exigia uma carta assinada por ele.” Passos até acrescenta, com algum cinismo, que Portas “se calhar, nem sabe disto”. Pois bem, ficou agora a saber e a humilhação, finalmente, chegou. A dúvida é se, depois disto, Paulo Portas (e Cavaco Silva e Luís Montenegro) vai juntar-se a André Ventura e apoiar a candidatura presidencial que Passos Coelho acaba de “lançar”. Isto se, entretanto, nas próximas diretas (e caso o Governo tenha caído) não avançar para a liderança do PSD. Uma ou outra, alguma coisa ele está a preparar. E ninguém vai pará-lo nem impedi-lo.

QOSHE - Ajustar contas, antes de Belém - Filipe Luís
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Ajustar contas, antes de Belém

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18.04.2024

E eis que, de repente, Pedro Passos Coelho se solta. Depois de anos de meia reclusão e de gestão de silêncios, o antigo primeiro-ministro afirmou, em entrevista à Rádio Observador, o seu “direito de dizer alguma coisa, de vez em quando [sublinhado nosso]”. Passos Coelho quase nada disse, desde 2017, mas a sua simples rara presença em eventos públicos prestou-se sempre a múltiplas leituras políticas. Reserva da direita, figura supostamente capaz de federar aquela área política, Passos tentou seguir as pisadas de Cavaco Silva e até parece que ambos leram Tácito: “O distanciamento aumenta o prestígio.” Mas enquanto o ex-Presidente da República pautou a sua intervenção cívica com periódicos artigos arrasadores, Passos (que também já escreveu) parece preferir intervenções avulsas, mais ou menos improvisadas. Em comum, a parcimónia da gestão da........

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