Enquanto espero que a cebola aloure no refogado ou quando passeio a Lulu e ela fareja pela vigésima vez o que julgo serem as mesmas ervas, enquanto me obrigo a ficar sentada à frente do computador ainda que as frases teimem em não se aprumar ou uma ideia se obstine em não aparecer, nas filas do supermercado, nas salas de espera dos médicos, distraio-me a pensar parvoíces. As minhas parvoíces vêm de sítios inexplicáveis onde suspeito que parte de mim está prisioneira. Estimo-as mais do que as coisas importantes em que devia pensar: a vida insegura que as palavras me dão, a crise por que o País passa, a insustentável leveza da amizade, o meu corpo a estragar-se caprichosamente, a emergência climática, o amor que impiedoso se esgarça, o destino de tanto lixo, o desarranjo do mundo.

Foi assim que me pus a pensar no número de dias que já vivi. Comecei a fazer contas, esquecida de que já não precisamos de nos esforçar para quase nada, Estou mesmo velha, balbuciei, dantes envelhecer bem era aprender a delegar, agora é aprender a desconfiar, Ou ainda não te convenceste de que tudo o que perguntares te será respondido? Googlei quantos dias vivi, escolhi o primeiro dos milhões de resultados que surgiram, inseri a data do meu nascimento e num instante fui informada de que tinha vivido 21 672 dias. Fiquei pasmada: 59 anos pareciam-me muito mais tempo do que 21 672 dias. Tenho uma aplicação instalada no telemóvel que conta os meus passos e há dias em que chego aos trinta mil. Ora, numa vida, um dia pouco mais é do que um passo. A canção da Xana não estava certa, Viver como por magia a vida num só dia. A vida cabe perfeitamente num só dia, não é preciso magia. Com a canção dos Rádio Macau na cabeça, não me apercebi imediatamente de que o site, logo abaixo do número dos dias que vivi, me dava os parabéns, Espero que tenham sido, na sua maioria, dias felizes, acrescentava. Eu queria corresponder ao desejo do gentil site, nem que para isso tivesse de fazer batota acrescentando aos dias indubitavelmente felizes os mornamente felizes, os quase felizes, os não-felizes por um triz, os que tiveram tudo para ser felizes mas, os que eu não dera conta de terem sido felizes. Na verdade, quando a lente do passado está distorcida, como a minha, todos os dias poderão ter sido dias felizes. Pachorrentamente, fui recordando aqueles de que guardo memória. Já cansada da inútil tarefa, lembrei-me do dia dos míscaros. Foi um dia feliz que sucedeu a outro inequivocamente feliz: o dia, em novembro de 1975, em que o meu pai chegou à Fontelonga, acompanhado pela minha mãe, ele acabado de regressar de Luanda, ela de Lisboa, onde estava há uns meses. Vinham buscar-me para voltarmos a ser uma família inseparável. Finalmente.

QOSHE - Parvoíces, dias felizes e veneno - Dulce Maria Cardoso
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Parvoíces, dias felizes e veneno

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01.12.2023

Enquanto espero que a cebola aloure no refogado ou quando passeio a Lulu e ela fareja pela vigésima vez o que julgo serem as mesmas ervas, enquanto me obrigo a ficar sentada à frente do computador ainda que as frases teimem em não se aprumar ou uma ideia se obstine em não aparecer, nas filas do supermercado, nas salas de espera dos médicos, distraio-me a pensar parvoíces. As minhas parvoíces vêm de sítios inexplicáveis onde suspeito que parte de mim está prisioneira. Estimo-as mais do que as coisas importantes em que devia pensar: a vida insegura que as palavras me dão, a crise por que o País passa, a insustentável leveza da amizade, o meu corpo a estragar-se caprichosamente, a........

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