Juntos corremos alucinadamente do hotel com toalhas dispostas em formato de cisne até a rodoviária de Poços de Caldas. A feira de literatura havia acabado e era dia de transar. Meu aplicativo de celular avisava que dentro de seis horas seria o pico da minha fertilidade. O ônibus chegaria a São Paulo dali a cinco horas. Estávamos ardentes e extenuados, quase sem voz, mas certos de que iriamos conseguir.

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Tentamos por umas 15 horas que meu parto fosse normal. Ele estava comigo o tempo todo, ainda que, em alguns momentos, trazendo mais incômodo do que alento. Na primeira foto com minha filha nos braços, meu companheiro se manteve em silêncio (talvez por respeito ou encantamento), mas quente e familiar.

Quando William Bonner anunciou o inominável e inelegível como presidente, eu amamentava Rita no peito direito enquanto tirava leite do esquerdo com a bombinha. Era uma cena caótica, que a mim representava a imposição da vida. Na tevê, o estúdio da Globo, asséptico e linear, anunciava um cortejo de finitude e horror. Viver ambiguidades tão intensas poderia ter lançado meu corpo puérpero a um vórtex de perturbação e desvario, mas adivinha quem estava comigo igualmente inflamado, agudo, se fazendo ouvir sem interrupção?

No ano em que, de uma só vez, perdi dois empregos, uma sociedade com amigos (que também funcionava, de certa forma, como uma estrutura psíquica) e um casamento de dez anos, o elefante de angústia que se instalou sobre o meu peito não foi gigante o suficiente para esmagar meu companheiro. Ele se manteve inabalável e com presença marcante nas madrugadas mais frias e nas manhãs mais secas.

Aos quatro anos, minha filha –que já rouba minhas maquiagens, imita com graça meus "ais" ao se abaixar para pegar algo no chão e toda hora aparece no meu escritório calçando meus sapatos– criou para si um parceiro com as mesmas características. Fiquei preocupada, conversei com especialistas, mas entendi que era um teatro passageiro.

E assim ficamos juntos alguns bons anos. E aqui uso "bom" para me referir a uma quantidade razoável de convívio. Não sei como vou dormir sem você me acordando antes da hora e me salvando de tantos pesadelos e atrasos. Ainda não descobri como será chegar sozinha às gravações do meu videocast; a diretora sempre reclamando de vê-lo tão colado a mim: "Ainda não se livrou dele?". Já eu, sinceramente, estava acostumada. Mais do que isso: talvez com ele eu me sentisse mesmo confortável. A solidão encontra aconchego em lugares estranhos.

Não a ponto de ir a uma cartomante perguntar quando nos encontraremos de novo. E se existe alguma chance de ficarmos juntos em breve. Não a esse ponto. Mas, sim, tenho saudade. Se não estivesse em luto, não escreveria.

Foi na manhã da última quinta-feira que ele se foi. Com uma mistura de inibidor de bomba de próton e cloridrato de azelastina, a doutora Lucinda pôs fim ao meu pigarro.

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Adeus, companheiro

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12.04.2024

Juntos corremos alucinadamente do hotel com toalhas dispostas em formato de cisne até a rodoviária de Poços de Caldas. A feira de literatura havia acabado e era dia de transar. Meu aplicativo de celular avisava que dentro de seis horas seria o pico da minha fertilidade. O ônibus chegaria a São Paulo dali a cinco horas. Estávamos ardentes e extenuados, quase sem voz, mas certos de que iriamos conseguir.

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Tentamos por umas 15 horas que meu parto fosse normal. Ele estava comigo o tempo todo, ainda que, em alguns momentos, trazendo mais incômodo do que alento. Na primeira foto com minha filha nos braços, meu companheiro se manteve em silêncio (talvez por respeito ou encantamento), mas quente e familiar.

Quando William Bonner anunciou o inominável e inelegível como presidente, eu amamentava Rita no peito direito enquanto tirava leite do esquerdo com a bombinha. Era uma cena caótica, que a mim representava a imposição da vida. Na tevê, o estúdio da Globo,........

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