Na segunda metade do século 20, a filosofia apresentava ao mundo das ideias uma teoria segundo a qual a era do cansaço com longas narrativas tinha chegado. A pós-modernidade chegara e, com ela a morte das utopias modernas de racionalidade universal em favor do bem e da verdade.

Sim, a modernidade nos entregou avanços técnicos e científicos, mas falhou em nos entregar a verdade última universal acerca das coisas e do mundo. Uma festa nos setores ditos progressistas —esse termo marketeiro— do pensamento acadêmico e jornalístico. A liberdade definitiva chegou, já que os poderosos não detinham mais o monopólio da verdade. Se episteme —conhecimento— é poder, logo, a verdade é sempre política, logo, quem tem poder detém a verdade. Lindo, não?

A partir daí, até vagabundos passam a usar a expressão "quem detém a narrativa vence". Enquanto na academia professores alienados da realidade —como quase sempre— ainda cantavam vitória devido à "morte" da verdade, e jornalistas brincavam com a era da pós-verdade, no mundo real, a direita, sempre feia, tomou para si o trunfo pós-moderno via redes sociais. Com essa mídia por excelência pós-moderna, foi à forra.

Instâncias jurídicas começaram a ficar com medo dessa pós-modernidade à mão de todos e decretaram guerra às fake news. Mas o conceito de fake news pressupõe que exista algo de factual que não seja, ele mesmo, falso. Algo de resistente a mentira como uma rocha resiste ao vento.

O jornalismo profissional depende para sua legitimidade que não seja reduzido a simples narrativa —apesar de os professores dos jornalistas na faculdade brincarem com essa ideia quando se trata de combater os "males" da sociedade—, caso contrário, para que irmos até a mídia profissional se tudo é narrativa? Que cada um escolha a sua e produza a sua. A população comum já tomou para si a boa nova pós-moderna. Esta hoje já não é filosofia, é senso comum de bêbado.

O público em geral já assimilou a ideia que tudo é narrativa —portanto, não existe verdade em lugar nenhum– e suspeita que os jornalistas servem a seus patrões, por isso comentários sempre trazem essa suspeita quando o seguidor não concorda com o autor do artigo. Os profissionais teriam "preferências" que deixam à vista para aqueles movidos pela certeza de que tudo não passa de narrativa.

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Se X disse algo, é verdade. Se Y disse a mesma coisa, já não é verdade. Se afirmar que tudo é socialmente construído vale para defender X, ok. Se a mesma afirmação for feita para defender Y, já não vale. Você acha que o preconceito contra X será superado por um conjunto de conteúdo aparentemente consistente? Essa crença trai sua ingenuidade ou má-fé. Ninguém adere a preconceitos por conta de desinformação, adere porque gosta. Banal assim. Suspeito que uma porcentagem ínfima supere o preconceito contra Y por conta de informação aparentemente consistente. Neste caso, já não era preconceito.

Interessante observar que essa "descoberta pós-moderna" pode se desdobrar em afetos bem distintos. Por um lado, ela pode produzir paixões avassaladoras por certas crenças —como no caso da crença na moda de crítica ao colonialismo, por conta da guerra no Oriente Médio. Toda narrativa com a qual você não concorda poderá ser lançada ao esgoto da crítica pós-colonial. Já o vídeo ou a foto que lhe apetece, terá a solidez de um dado da mecânica de Newton.

Por outro lado, a boa nova pós-moderna poderá fazer de você um cínico que parece crer que o cinismo —"cinismo" no sentido do senso comum, que inteligentinhos de plantão não me venham com o filósofo antigo cínico Diógenes e seu barril— não tornará o ar que você respira insalubre.

Desde a pandemia já estouraram duas guerras. Os ucranianos estão esquecidos, claro, depois do frisson inicial. Agora o frisson são os palestinos. Talvez duas coisas permaneçam verdadeiras em meio aos escombros da pós-modernidade. Uma é o ódio, essa realidade atávica que resiste a toda música melosa e a toda jura vazia de amor à humanidade. A outra é que o grande público cansará de todas as vítimas.

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Ninguém é preconceituoso por desinformação, mas, sim, porque gosta

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06.11.2023

Na segunda metade do século 20, a filosofia apresentava ao mundo das ideias uma teoria segundo a qual a era do cansaço com longas narrativas tinha chegado. A pós-modernidade chegara e, com ela a morte das utopias modernas de racionalidade universal em favor do bem e da verdade.

Sim, a modernidade nos entregou avanços técnicos e científicos, mas falhou em nos entregar a verdade última universal acerca das coisas e do mundo. Uma festa nos setores ditos progressistas —esse termo marketeiro— do pensamento acadêmico e jornalístico. A liberdade definitiva chegou, já que os poderosos não detinham mais o monopólio da verdade. Se episteme —conhecimento— é poder, logo, a verdade é sempre política, logo, quem tem poder detém a verdade. Lindo, não?

A partir daí, até vagabundos passam a usar a expressão "quem detém a narrativa vence". Enquanto na academia professores alienados da realidade —como quase sempre— ainda cantavam vitória devido à "morte" da verdade, e jornalistas brincavam com a era da pós-verdade, no mundo real, a direita, sempre feia, tomou para si o trunfo pós-moderno via redes sociais. Com essa mídia por excelência pós-moderna, foi à forra.

Instâncias jurídicas começaram a ficar com medo dessa pós-modernidade à mão de todos e decretaram guerra às fake news. Mas o conceito de fake news pressupõe que exista algo de........

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