A ideia de que evoluímos para melhor está na praça. Até bebês nascem pensando assim. Às vezes, quando se nega tal crença, parece um arroto à mesa. Ao contrário do que muitos pensam, essa ideia nada tem a ver com as religiões na sua raiz.

O cristianismo, sim, acabou carregando nesses tons, mas, na sua origem, ele era muito mais escatológico: o melhor será a vida após a morte e após o fim do mundo tal como o conhecemos. Chegaríamos ao tal "reino de Deus".

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Com o avançar da história europeia, seu secularismo burguês, iluminismo, cientificismo, movimentos políticos revolucionários, o cristianismo atravessou uma mutação radical inclusive porque o mundo não acabou e Jesus não voltou —no sentido de reinventar-se enquanto uma prática antes de tudo moral, política e de ação histórica. Ficasse ele no momento antigo, com suas expectativas de fim de mundo —alguns loucos ainda estão lá—, teria, provavelmente, desaparecido e permanecido uma seita judaica irrelevante.

Mas, para compreendemos essa equação que chega até nós, ou seja, uma época, como a nossa, obcecada pela ideia de que evoluímos moralmente e politicamente —tecnicamente não há dúvida— precisamos trazer à memória uma escola filosófica e seu fundador, que hoje é esquecido, Auguste Comte.

Objeto de chacota por profissionais da área, o positivismo, fundado por ele, pode ter saído de moda nas escolas de filosofia, mas venceu na cultura de forma profunda e ampla, e existem razões claras para isso, pois o burguês, o político, o empreendedor, quando sonham, sonham que são um sacerdote da igreja positivista.

A igreja positivista —motivo supremo de chacotas com Comte— seria uma religião em que o objeto de culto é a humanidade e sua evolução racional e técnica. Comte se via como o papa dessa futura igreja, o que o põe sob uma certa suspeita de dano mental. Mas esqueçamos esse detalhe e observemos como ele acertou na crença que viria a ser a moderna por excelência.

Para Comte, a humanidade passara por uma fase religiosa ou mitológica em que buscava responder às perguntas essenciais, tipo "de onde viemos?", "quem criou isso tudo?", "o que é o bem e o mal?" e semelhantes, com respostas míticas fantásticas.

Basicamente, Deus, ou deuses, ou deusas, seriam as causas e saberiam as respostas.

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Numa segunda era, a metafísica, a humanidade respondia a essas mesmas perguntas com ginásticas racionais que caminhavam por substâncias abstratas, tipo "o bem", "o mal", "a causa primeira", "o ser", enfim, delírios com roupagem racional. Melhor a simples religião, suspeitava Comte.

E a terceira era a positivista, inaugurada com a ciência, que abandonaria "os quês", "os porquês" e no lugar dessas perguntas absolutas poria os "comos". Isto é, em lugar da teologia e da metafísica, a ciência e a engenharia nos ensinariam como melhorar o mundo, a vida, a sociedade, a natureza. Você não se reconhece nessa crença?

A própria noção de que perguntar como resolver um problema concreto é muito mais eficaz do que se perguntar de onde viemos é a nossa cara. Os "comos" é que importam e que nos fazem evoluir.

A sociedade moderna respira positivismo, mesmo quando se pensa romântica. A psicologia, filha do romantismo, é a prova cabal desse fato: conhecer a alma, para libertá-la da ignorância sobre si mesma que a torna escrava da escuridão dos sintomas. Difícil achar um profissional de saúde mental que não se veja como alguém que trabalha para a evolução dos nossos modos de viver e construir a sociedade.

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A psicologia positiva é apenas o rebento mais evidente da família do positivismo psicológico, até pelo nome que adota, e pelo método supostamente empírico em busca "do que dá certo" na experiência.

A chave do gozo positivista não está tanto, ou somente, na ideia da ciência e da engenharia como superiores à teologia ou à metafísica, está no culto à humanidade enquanto tal.

Pensar a humanidade como um ser em movimento, em direção ao aperfeiçoamento pelas nossas próprias mãos, é a maior forma de masturbação metafísica já criada pela própria humanidade.

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A ciência evoluiu a humanidade, mas você se reconhece nessa crença?

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08.01.2024

A ideia de que evoluímos para melhor está na praça. Até bebês nascem pensando assim. Às vezes, quando se nega tal crença, parece um arroto à mesa. Ao contrário do que muitos pensam, essa ideia nada tem a ver com as religiões na sua raiz.

O cristianismo, sim, acabou carregando nesses tons, mas, na sua origem, ele era muito mais escatológico: o melhor será a vida após a morte e após o fim do mundo tal como o conhecemos. Chegaríamos ao tal "reino de Deus".

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Com o avançar da história europeia, seu secularismo burguês, iluminismo, cientificismo, movimentos políticos revolucionários, o cristianismo atravessou uma mutação radical inclusive porque o mundo não acabou e Jesus não voltou —no sentido de reinventar-se enquanto uma prática antes de tudo moral, política e de ação histórica. Ficasse ele no momento antigo, com suas expectativas de fim de mundo —alguns loucos ainda estão lá—, teria, provavelmente, desaparecido e permanecido uma seita judaica irrelevante.

Mas, para compreendemos essa equação que chega até nós, ou seja, uma época, como a nossa, obcecada pela ideia de que evoluímos moralmente e politicamente —tecnicamente não há dúvida— precisamos trazer à memória uma escola filosófica e seu fundador, que hoje é esquecido, Auguste........

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