Aconteceu há pouco tempo com um amigo e fiquei tão impressionada que resolvi contar. O Fábio é fotógrafo, estava a trabalho em Salvador. Já vinha fotografando há alguns dias na cidade, caminhando a pé, como costuma fazer em todos os seus destinos.

No domingo em questão, acordou mais cedo: às 7h30 precisava estar no Pelourinho para uma sessão de fotos. Saiu do Largo do Campo Grande com sua mochila nas costas, já sentindo alguma diferença na atmosfera.

Ao contrário dos outros dias, a região estava erma, o comércio fechado. Durante o trajeto, só cruzou com um casal que se exercitava.

Criado no Rio de Janeiro, Fábio é o tipo de pessoa que não dá mole. E ali também não deu. Caminhava atento, sem pegar o celular, de olho nos becos. De repente, quando estava perto do Relógio de São Pedro, sentiu uma coisa estranha, uma movimentação às suas costas.

Virou-se e deu de cara com um facão, que rasgava o ar em direção à sua nuca. O facão estava na mão de um rapaz que, como ele viria a saber, tinha 23 anos.

Ao lado dele, havia outro garoto, também segurando um facão. Ambos eram magros, estavam sujos e tinham os olhos vermelhos. Nas palavras do meu amigo: "babavam com um olhar diabólico".

Tudo isso o Fábio obviamente elaborou depois, a partir da imagem que ficou e ficará para sempre na sua retina. Na hora, ele e o rapaz que iria lhe cravar o facão só se olharam.

Não esperando ser flagrado, o rapaz deu um passo para trás, e foi a partir dessa chance de centímetros que o Fábio começou a correr, pensando que não adiantaria oferecer a sua mochila a quem sequer pediu alguma coisa.

Conheci o Fábio na yoga, e não é só isso que ele pratica. Já foi atleta e, ainda hoje, corre e pedala bastante. Chegara a hora de usar toda aquela musculatura que, estimulada pela adrenalina, dava seu máximo e alguma esperança ao meu amigo, que pensava "se eu correr muito, eles vão desistir".

Fábio não sabe precisar por quanto tempo correu até olhar para trás. Tinha a esperança de que tivessem sumido, mas lá estavam os dois. Meu amigo seguiu correndo, atravessando a avenida e, partir desse momento, começou a pensar que certamente iria morrer.

Pensou no quanto essa morte seria dolorida, não só para ele, mas para familiares e amigos. Pensou especialmente na sua mulher, no trabalho que daria para ela, enlutada cuidando do transporte do seu corpo.

Pelo peso da mochila ou do cansaço, Fábio tropeçou e caiu de peito no chão. Olhou para trás e viu o mesmo facão descendo na sua direção. Foi nessa hora que também ouviu: "parado, parado!" Um homem rendia com uma arma o rapaz, enquanto o outro fugia.

Só então meu amigo se percebeu ensanguentado, ralado, com as costelas doendo. Ainda assim levantou-se. O homem contou que era policial, à paisana no seu dia de folga.

Mais

Se o policial não tivesse aparecido, meu amigo estaria morto. Se tivesse aparecido cinco segundos depois, estaria morto. Meu amigo abraçou-o. Depois se virou para o rapaz, que estava no chão, com as mãos algemadas, rindo. Claramente doidão.

Perguntou a ele: você ia me matar sem roubar nada? O rapaz disse costumam matar pessoas do tamanho dele antes para que não reajam, só em seguida pegando os pertences. Naquele momento meu amigo percebeu que a sua vida valia o mesmo que uma mochila. Que, para o rapaz, qualquer vida vale tanto quanto uma mochila.

Na delegacia, Fábio viu o rapaz cair no sono. Conta que não teve vontade de se vingar. Sentiu apenas uma tristeza profunda e uma gratidão enorme por estar vivo.

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Mercados são a chave para o desenvolvimento sustentável

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26.11.2023

Aconteceu há pouco tempo com um amigo e fiquei tão impressionada que resolvi contar. O Fábio é fotógrafo, estava a trabalho em Salvador. Já vinha fotografando há alguns dias na cidade, caminhando a pé, como costuma fazer em todos os seus destinos.

No domingo em questão, acordou mais cedo: às 7h30 precisava estar no Pelourinho para uma sessão de fotos. Saiu do Largo do Campo Grande com sua mochila nas costas, já sentindo alguma diferença na atmosfera.

Ao contrário dos outros dias, a região estava erma, o comércio fechado. Durante o trajeto, só cruzou com um casal que se exercitava.

Criado no Rio de Janeiro, Fábio é o tipo de pessoa que não dá mole. E ali também não deu. Caminhava atento, sem pegar o celular, de olho nos becos. De repente, quando estava perto do Relógio de São Pedro, sentiu uma coisa estranha, uma movimentação às suas costas.

Virou-se e deu de cara com um facão, que rasgava o ar em direção à sua nuca. O facão estava na mão de um rapaz que, como ele viria a saber, tinha 23 anos.

Ao lado dele, havia outro garoto, também segurando um facão. Ambos eram magros, estavam sujos e tinham os olhos vermelhos. Nas palavras do meu amigo: "babavam com um olhar........

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