Sempre fui desligada. Uma das minhas obras-primas foi passar no drive-thru daquela rede –me recuso a fazer propaganda de marca–, pedir um lanche, pagar e ir embora, só percebendo que não tinha pegado o pacote quadras depois, ao farejar o ar em busca do cheiro da batata frita e só encontrar CO2.

Com o tempo, virei mãe, passei a acumular mais funções e, à medida que equilibrava pratos, canetas e mamadeiras, o problema foi piorando. Esquecer o celular dentro da geladeira era normal entre eu e minhas amigas, uma espécie de grito de guerra na savana das mães-solo.

Há poucos meses, no entanto, comecei a achar que estava quebrando recordes demais. Não achei meu carro em alguns estacionamentos. Toquei a campainha da minha própria casa. Passei a esquecer nomes de atores que adoro. Mais um pouco e eu estaria dizendo: "aquele cara cabeludo, filho de Maria, que foi crucificado, como era mesmo o nome?"

Ouvindo por aí que quanto antes se descobre um quadro de declínio cognitivo ou demência, melhor é para tratá-lo, resolvi marcar uma consulta com um neurologista.

Depois de fazer algumas perguntas e me tranquilizar um pouco –provavelmente meu caso seria de estresse, um grande deflagrador de lapsos de memória–, ele propôs que fizéssemos um teste. Eu usaria seu tablet para uma avaliação online, feita simultaneamente por centenas de pessoas, o que nos daria uma noção sobre as minhas faculdades e sobre onde me encontro na média.

Com o tablet na mão, cumpri várias etapas, entre elas esconder e depois encontrar objetos virtuais em seu consultório. Como ansiosa que sou, lembro do medo de não encontrar o urso virtual e de como esse receio me distraiu da tarefa.

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Ainda assim, tive um ótimo resultado no quesito memória, tirando nota nove e alguma coisa –claro que não lembro do número exato. No entanto, outra nota, mais abaixo, chamou a atenção. Você ainda dirige? O médico me perguntou, olhando para o resultado da avaliação, projetado numa tela. Como assim "ainda"? pensei, tendo apenas 48 anos. Ele apontou para o "3" que tirei em coordenação espacial. De fato, eu havia me trombado e dado uma cotovelada na quina ao procurar os objetos.

O que tornou esse resultado menos preocupante foi o que lhe contei a seguir. Quando era bailarina, aos 20 anos, minha professora brincava que eu só servia para ser solista: dançava bem mas não sabia me movimentar no palco, avançando sobre o resto do corpo de baile. Na casa dos meus pais, quebrava tantos objetos que tinha o apelido de "preju".

Como aquela característica já estava comigo desde sempre, não parecia preocupante. De qualquer forma, o neurologista me pediu alguns exames. E disse para eu ficar tranquila. Se, ao estacionar o carro, estou de olho ou ouvidos no celular, é normal que não lembre em qual zona o deixei, já que a memória tende a reter o que a pessoa acha mais interessante, e "setor F laranja" não costuma ser uma informação muito sexy.

Mais

Um mês depois, levei os resultados para o neurologista. Estava tudo certo comigo. Saí da consulta aliviada e me sentindo Zeno, o personagem de Italo Svevo. Um homem de meia-idade que se preocupa tanto em ficar doente que se antecipa ao agravamento de qualquer quadro, morrendo velho mas, obviamente, neurótico.

Imagine se, assim como nós, Zeno tivesse vivido depois do nascimento da internet, com o celular na mão o tempo todo, se distraindo do agora e ainda inventando problemas com o suporte do Dr. Google. Haja saúde mental para o sujeito contemporâneo.

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Fui ao neurologista por causa da minha memória

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11.03.2024

Sempre fui desligada. Uma das minhas obras-primas foi passar no drive-thru daquela rede –me recuso a fazer propaganda de marca–, pedir um lanche, pagar e ir embora, só percebendo que não tinha pegado o pacote quadras depois, ao farejar o ar em busca do cheiro da batata frita e só encontrar CO2.

Com o tempo, virei mãe, passei a acumular mais funções e, à medida que equilibrava pratos, canetas e mamadeiras, o problema foi piorando. Esquecer o celular dentro da geladeira era normal entre eu e minhas amigas, uma espécie de grito de guerra na savana das mães-solo.

Há poucos meses, no entanto, comecei a achar que estava quebrando recordes demais. Não achei meu carro em alguns estacionamentos. Toquei a campainha da minha própria casa. Passei a esquecer nomes de atores que adoro. Mais um pouco e eu estaria dizendo: "aquele cara cabeludo, filho de Maria, que foi crucificado, como era mesmo o nome?"

Ouvindo por aí que quanto antes se descobre um quadro de declínio cognitivo ou demência, melhor é para tratá-lo, resolvi marcar uma consulta com um neurologista.

Depois de fazer algumas perguntas e me tranquilizar um pouco –provavelmente meu caso seria de estresse, um grande deflagrador de lapsos de........

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