Ano passado, a essas horas, quem assava com uma maçã vermelha na boca era eu. Que Natal caído nós tivemos, impregnados por tantas diferenças ideológicas. Você com quase 80 anos, eu com quase 50. Depois de décadas em cidades diferentes, finalmente estávamos juntos para a ceia e havia aquela maldita polarização entre nós.

Não só entre nós, entre todos nós. Os tios que me pegavam no colo. Os primos que andavam comigo de bicicleta. Aqueles que, ainda pequenos, ficavam ao meu lado fitando o céu à espera do trenó enquanto o Papai Noel passava sorrateiro pelas nossas costas. Parentes que, antigamente, não hesitariam em me dar a coxa do peru agora não me dariam nem o osso: que vá para Cuba em busca de um chester. Não me faço de rogada: também andei torcendo a boca para um pacote azul arrematado por uma fita amarela que alguém me deu.

Que saudade das brigas daqueles velhos Natais. Não era lindo se engalfinhar por futebol? O máximo da polarização era quando uma parte da família se alinhava com Chico Buarque e a outra com Caetano. Com Beatles ou com Rolling Stones. Com Beija-Flor ou com Mangueira. O cúmulo do radicalismo era servir só Cidra no Ano-Novo. Ou mandar todo mundo calar a boca para ouvir o especial do Roberto. Éramos inocentes e não sabíamos. Agora somos só idiotas mesmo, apoiando nossos cotovelos sobre a toalha de motivos natalinos como se estivéssemos no STF e devêssemos nos pronunciar com veemência sobre armas ou aborto —como se alguém nos pagasse por esse desgaste.

É por isso que hoje eu me recuso. Tenho quase 50 outonos, você, quase 80, e veja que maravilha: nossas folhas seguem caindo. Por glória, nossas folhas seguem caindo. Mais um ano se passou e escapamos do câncer, do aneurisma, da gordura no sangue, do ataque cardíaco, da dengue, do choque anafilático, da depressão profunda, das balas perdidas, das enchentes, dos deslizamentos, dos raios, dos acidentes aéreos, dos atentados, do cardápio de violências de um farto rodízio chamado Brasil. E também escapamos do que não mata mas mata: o ressentimento, a desesperança, a solidão compulsiva, a apatia, as dores crônicas.

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Nem sempre vai ser assim. Teremos anos bons, teremos anos fortes, teremos anos tristes, teremos anos mortes. E neste 2023 em que finco meus pés cansados e apertados nesses sapatos de festa, não deixarei que nem Karl Marx nem Olavo de Carvalho estraguem a nossa ceia.

Meu desejo para hoje é que o liberalismo regule a baixa demanda pelos fios de ovos. Que o comunismo esteja na divisão igualitária do pavê. Que o capitalismo brilhe dentro do saco de presentes. E que estejamos bêbados o bastante para trocar todos esses regimes e esquecer aquele outro feito pela nutricionista.

Amanhã, com a ressaca na cabeça e o fígado rastejando entre os papéis de presente, voltaremos às atividades normais, trocando eventuais insultos pelo zap e bloqueando amigos inconvenientes. Hoje, meu bom velhinho, se for preciso, meu coração baterá até do lado direito por você.

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É Natal nos dois polos

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25.12.2023

Ano passado, a essas horas, quem assava com uma maçã vermelha na boca era eu. Que Natal caído nós tivemos, impregnados por tantas diferenças ideológicas. Você com quase 80 anos, eu com quase 50. Depois de décadas em cidades diferentes, finalmente estávamos juntos para a ceia e havia aquela maldita polarização entre nós.

Não só entre nós, entre todos nós. Os tios que me pegavam no colo. Os primos que andavam comigo de bicicleta. Aqueles que, ainda pequenos, ficavam ao meu lado fitando o céu à espera do trenó enquanto o Papai Noel passava sorrateiro pelas nossas costas. Parentes que, antigamente, não hesitariam em me dar a coxa do peru agora não me dariam nem o osso: que vá para Cuba em busca de um chester. Não me faço de rogada: também andei torcendo a boca para um pacote azul arrematado por uma fita amarela que alguém me deu.

Que saudade das brigas daqueles velhos Natais. Não era lindo se engalfinhar por futebol? O máximo da polarização era quando uma parte da família se alinhava com Chico Buarque e a outra com Caetano. Com Beatles ou com Rolling........

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