Àqueles interessados na gênese do conceito de raça e, daí, das sociedades racistas, não podem deixar de ler "Who’s Black and Why?" ("Quem é Preto e Por quê?"), editado por Henry Louis Gates Jr. e Andrew Curran. Em 1741, a Academia Real de Ciências de Bordeaux lançou uma competição para resolver a questão: "Qual é a causa física da pele dos negros, a qualidade de seus cabelos e a degeneração de ambos?"

A obra tem o mérito de reunir os 16 ensaios submetidos ao prêmio. As tresloucadas explicações oferecidas pelos naturalistas para os traços negros (o clima, a bile, o sêmen, os poros da pele, a Divina Providência etc) ajudam a compreender o amadurecimento do conceito científico de raça, o qual transformou supostas diferenças cognitivas e físicas entre povos em categorias normativas e esquemas taxonômicos, com a finalidade de posicionar o branco europeu no pináculo de uma rígida hierarquia racial —e o negro na extremidade inferior dela.

Adornada com uma cientificidade iluminista fajuta, essa ideia de hierarquia racial atravessou, insidiosamente, diferentes momentos históricos, sempre sob a chancela da elite econômica e intelectual.

Editores do periódico científico norte-americano The New England Journal of Medicine —um dos mais prestigiosos do mundo—, admitem a responsabilidade da ciência e do próprio jornal na vocalização desse racismo. Numa coletânea, cientistas revisitaram algumas das teses enviesadas publicadas pelo jornal desde 1812, data de sua criação.

O escrutínio nos lembra que foi um artigo do New England, de 1842, que propalou a falácia que negros escravizados seriam raramente propensos à insanidade. Para o autor do levantamento, Edward Jarvis, "a escravidão tem uma influência maravilhosa no desenvolvimento das faculdades morais e dos poderes intelectuais". A noção de que a liberdade causaria insanidade fora por décadas explorada, sagazmente, pelo sistema escravagista.

A abolição apenas reconfigurou os propósitos da hierarquia racial, com contínuo endosso da ciência. Num artigo de 1917, um médico da Flórida conjecturou que "um homem branco educado sob a influência de bebidas alcoólicas é uma visão triste e nojenta. Um negro nas mesmas condições é um tigre solto, um vulcão do qual todos devem fugir".

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Narrativas dessa espécie corporificaram a tese pseudocientífica das raças desiguais, que se dispõe a justificar a indecorosa condição de vida dos negros por seus supostos "comportamentos ignorantes" e "características constitutivas", escamoteando, assim, o fenômeno explicativo mais evidente: a iniquidade racial. Eis um exemplo do nosso quintal. A Covid-19 vitimou majoritariamente negros no Brasil. Na precariedade de saúde, trabalho, educação, moradia e saneamento básico que marca o cotidiano das periferias, encontra-se a explicação sociológica para o desfecho. Há, porém, quem o analise pela ótica racialista, segundo a qual "esse tipo de povo é naturalmente festeiro, desordeiro, indisciplinado, por isso merecedor de seu destino". Sem o ópio da hierarquia racial, teríamos todos de engolir a seco o fato de que, durante uma pandemia das mais letais, serviços essenciais nos foram mantidos às custas "daquela gente" não essencial.

É da práxis científica identificar autoenganos para que não se repitam. Reconhecemos que o conceito de raça é impreciso para representar a ancestralidade e, consequentemente, a variabilidade genética humana. Também aceitamos que fatores socioeconômicos são potentes indutores de iniquidade no campo da saúde. E que o racismo é um relevante catalisador de desigualdades. Entretanto, a mais relevante lição que a ciência do racismo nos lega é que a ciência, ela própria, é intrinsecamente racista.

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Prova disso é a acachapante sub-representação de negros na academia. No Brasil, 15% dos alunos de pós-graduação são pretos ou pardos. Na USP (Universidade de São Paulo), 2% dos docentes são negros. Entre os mais destacados pesquisadores brasileiros, homens negros perfazem 0,7% e mulheres negras inexistem. A ciência hegemonicamente branca produz um conhecimento árido, assimétrico, que invisibiliza a história, a cultura, os comportamentos e as necessidades dos negros, em violação ao direito de todos a usufruir dos benefícios do progresso científico e suas aplicações.

A ciência —que já se prestou a perscrutar o motivo da degeneração da pele preta— faria bem se questionasse a causa do estudo da sífilis de Tuskegee, que privou centenas de homens negros de tratamento adequado, sob o pretexto de investigar a história natural da doença; ou a causa do apagamento de Henrietta Lacks, paciente negra de quem cientistas do Johns Hopkins espoliaram células tumorais precursoras da linhagem HeLA, que revolucionaria a medicina. Conviria aos cientistas brancos, enfim, indagarmos: senão o racismo, qual é a causa da degeneração da ciência?

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Qual é a causa da degeneração da pele preta?

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01.03.2024

Àqueles interessados na gênese do conceito de raça e, daí, das sociedades racistas, não podem deixar de ler "Who’s Black and Why?" ("Quem é Preto e Por quê?"), editado por Henry Louis Gates Jr. e Andrew Curran. Em 1741, a Academia Real de Ciências de Bordeaux lançou uma competição para resolver a questão: "Qual é a causa física da pele dos negros, a qualidade de seus cabelos e a degeneração de ambos?"

A obra tem o mérito de reunir os 16 ensaios submetidos ao prêmio. As tresloucadas explicações oferecidas pelos naturalistas para os traços negros (o clima, a bile, o sêmen, os poros da pele, a Divina Providência etc) ajudam a compreender o amadurecimento do conceito científico de raça, o qual transformou supostas diferenças cognitivas e físicas entre povos em categorias normativas e esquemas taxonômicos, com a finalidade de posicionar o branco europeu no pináculo de uma rígida hierarquia racial —e o negro na extremidade inferior dela.

Adornada com uma cientificidade iluminista fajuta, essa ideia de hierarquia racial atravessou, insidiosamente, diferentes momentos históricos, sempre sob a chancela da elite econômica e intelectual.

Editores do periódico científico norte-americano The New England Journal of Medicine —um dos mais prestigiosos do mundo—, admitem a responsabilidade da ciência e do próprio jornal na vocalização desse racismo. Numa coletânea, cientistas revisitaram algumas das teses enviesadas publicadas pelo jornal desde 1812, data de sua criação.

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