Os dados recentes das contas nacionais, divulgados pelo IBGE, mostram um acirramento do conflito distributivo no Brasil. Entre 2017 e 2021, os lucros (fonte principal de renda dos mais ricos) cresceram mais do que os salários e os benefícios sociais (fonte de renda principal dos mais pobres e da classe média).

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Esse aumento da concentração de renda e riqueza agrava um quadro sociopolítico já inflamado, bem como reflete movimentos estruturais da economia brasileira.

A perda do poder de barganha dos trabalhadores explica a estagnação da renda do trabalho. Depois de duas décadas de crescimento real dos salários, do primeiro governo FHC (1995-1998) até o governo Dilma (2011-2016), os salários estagnaram sob Temer e Bolsonaro (0,2% de ganho real entre 2017 e 2022). A reforma trabalhista de 2017 reduziu os custos para o empregador, mas não gerou os milhões de empregos formais prometidos. A reforma piorou o mercado de trabalho, com aumento na proporção de empregos precários no setor de serviços de baixa qualificação.

Ademais, despadronizou a jornada de trabalho do "precariado de aplicativos", o que também acentua a desigualdade. Trabalhadores ficam mais tempo à disposição do trabalho, com parcela expressiva desse tempo sem de fato auferir nenhuma renda. Ou, o que é semelhante, muitos precisam trabalhar mais para manter a renda que tinham antes da reforma trabalhista.

Além disso, essa queda da fatia dos salários na renda também se deve à lógica antiestatal de Temer e Bolsonaro, que implicou arrocho dos salários do funcionalismo público civil e a não reposição de 73 mil servidores aposentados ou desligados, segundo dados do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI). Afinal, um setor público menos aquecido debilita também os salários no setor privado, conforme mostram diversos estudos acadêmicos internacionais.

Segundo dados do Tesouro Nacional, entre 2017 e 2022 os ganhos reais da renda de militares ativos (2%) e inativos (7%) contrastam com as perdas reais de servidores civis ativos (11%) e inativos (8%).

O ataque genérico aos "privilégios" do funcionalismo ignora as desigualdades internas ao setor público. Ademais, oculta a anemia sistêmica dos salários no setor privado, onde o prêmio salarial pela escolaridade vem caindo pela escassez de oferta de bons empregos, fruto da desindustrialização da economia e da reprimarização da nossa pauta de exportações.

No lado dos lucros, concentração de poder de mercado de grandes empresas, digitalização e automação se unem ao avanço da "pejotização", pela qual trabalhadores são contratados como pessoa jurídica, transformando o rendimento do trabalho em lucro de empresa.

Essa metamorfose quantitativa implica mudanças qualitativas. Excluído da (desidratada) rede de proteção do emprego formal, o trabalhador convertido em "empresário de si mesmo" muda de lado na luta distributiva e agrava ainda mais o racha na unidade já precária dos interesses do trabalho.

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Seja por meio de salários, seja por meio de lucros, as melhores remunerações correm para os mais ricos, impulsionadas pela desigualdade de acesso às oportunidades, ligada à estrutura e ao patrimônio familiares, às conexões sociais e à propriedade concentrada do capital empresarial e o acesso diferenciado a crédito. Vejamos o caso do agronegócio.

No período 2017-2022, o rendimento da atividade rural —isento de tributação na sua maior parte— teve ganho real de 140% e beneficiou principalmente os estratos mais ricos. Nota técnica de Sérgio Gobetti (Ibre-FGV) mostrou que, em estados dominados pelo agronegócio, o crescimento real da renda do 0,1% mais rico chegou a 117% em Mato Grosso, 99% em Mato Grosso do Sul e 78% em Tocantins —ante 42% na média nacional para o mesmo estrato de renda. No mesmo período, o agronegócio adicionou apenas 4% do total de vagas criadas no Brasil e o ganho salarial real de empregados no agronegócio foi de 0,5%, na média (Cepea-Esalq/USP).

Estudos futuros poderão detalhar como o boom de commodities iniciado em 2018 acentuou a desigualdade no topo da distribuição.

Por fim, persiste o desafio de democratizar os empregos de alta qualidade, nos quais se concentram os ganhos de produtividade do trabalho.

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Aumento da concentração de renda agrava quadro sociopolítico

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15.02.2024

Os dados recentes das contas nacionais, divulgados pelo IBGE, mostram um acirramento do conflito distributivo no Brasil. Entre 2017 e 2021, os lucros (fonte principal de renda dos mais ricos) cresceram mais do que os salários e os benefícios sociais (fonte de renda principal dos mais pobres e da classe média).

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Esse aumento da concentração de renda e riqueza agrava um quadro sociopolítico já inflamado, bem como reflete movimentos estruturais da economia brasileira.

A perda do poder de barganha dos trabalhadores explica a estagnação da renda do trabalho. Depois de duas décadas de crescimento real dos salários, do primeiro governo FHC (1995-1998) até o governo Dilma (2011-2016), os salários estagnaram sob Temer e Bolsonaro (0,2% de ganho real entre 2017 e 2022). A reforma trabalhista de 2017 reduziu os custos para o empregador, mas não gerou os milhões de empregos formais prometidos. A reforma piorou o mercado de trabalho, com aumento na proporção de empregos precários no setor de serviços de baixa qualificação.

Ademais, despadronizou a jornada de trabalho do "precariado de aplicativos", o que também acentua a desigualdade. Trabalhadores ficam mais tempo à disposição do trabalho, com parcela expressiva desse tempo sem de fato auferir nenhuma renda. Ou, o que é semelhante, muitos precisam trabalhar mais........

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