Em setembro de 2021, no primeiro aniversário da assinatura dos Acordos de Abraão, que normalizaram as relações diplomáticas entre Israel, os Emirados Árabes Unidos e o Bahrein (depois estendidos por Telavive a Marrocos e ao Sudão), estreou nas Nações Unidas um documentário intitulado "Finding Abraham", do argumentista e realizador Malcolm Green, entretanto galardoado com diversos prémios. O documentário tem 30 minutos, está disponível no YouTube e vale (muito) a pena ser visto.

"Finding Abraham" começa com um enunciado motivacional, explicando como, na sequência da assinatura dos Acordos, “um pequeno grupo de jovens de Israel e do golfo Árabe se juntou numa viagem para encontrar a substância por detrás da cerimónia”. Esses jovens ativistas (que partilham o ecrã com vultos como Chemi Peres, o filho de Shimon Peres, o conselheiro para a Paz Dennis Ross, ou o jornalista português Henrique Cymerman), autointitulam-se “Líderes do Amanhã”.

O filme documentário é magnífico na forma e exemplar no conteúdo. Sobre a banda sonora "I just want a little bit of peace and love", jovens israelitas e muçulmanos - trabalhadores, voluntários, empreendedores, cientistas, imigrantes, representantes de minorias - encontram-se, dialogam e trocam experiências, visões e opiniões. Na deslumbrante paisagem do deserto israelita, uma judia e uma árabe entrelaçam-se num abraço sem palavras. E as palavras que outros, noutras cenas, pronunciam, fazem as mensagens do filme – que é preciso falar(em), israelitas e árabes, judeus e muçulmanos; que o mais importante, naquele martirizado Médio Oriente (que um dos entrevistados lembra ser bem mais problemático do que a neutral Suíça, a pacata Suécia ou o calmo deserto do Texas…), é salvar vidas, construir encontros e superar barreiras (sobretudo mentais); que há uma humanidade comum, que a todos une em torno da pergunta o que sou/somos (e para quem), e não quem sou/somos; e entre todos lembrar que, lá onde está e olhando para baixo, Abraão (o patriarca das três religiões do Livro) contempla como semelhantes os filhos da Torá e os filhos do Corão.

"Finding Abraham" queria que o espírito abraâmico não fosse apenas uma nota de história ou teologia no cabeçalho de um tratado diplomático; que descesse dos papéis e dos discursos dos líderes sentados no relvado da Casa Branca, em setembro de 2020, para o terreno, para a contemplação do outro, diferente no credo, afinal igual na condição humana. Judeus e árabes não se podem entender? Israelitas e palestinianos juram agora morte recíproca? Abraão lembrar-lhes-ia talvez que no recolhimento de uma Sinagoga, de uma Mesquita ou de uma Igreja cristã, o crente de cada um dos credos faz a mesmíssima coisa: rezar, agradecer, pedir, dialogar, reconfortar-se. Não é a religião que os divide, é a política; e talvez nem seja a política, mas os que a fazem, presos por agendas e ódios que o tribalismo demencial das sociedades atuais enquista em posições absolutamente excludentes do outro e cegas em relação a qualquer chão comum onde se possa construir algo. É isso que vemos, no ruído mediático que nos rodeia, envenenado pelo antissemitismo de antanho e pela islamofobia de hoje.

Este texto vem a propósito da guerra Israel-Hamas, mas é sobre o que tem de aproximar judeus e árabes para quando, um dia, ela (mais uma nos 75 anos desde 1948) acabar. Até lá, citando o evangelista São Lucas, “haverá choro e ranger de dentes” - em ambas as partes do conflito, pelas (des)razões que assistem a uma e a outra. E todavia, ou no entanto, “a paz esteja convosco” diz-se "Shalom Alechem"» em hebraico e "Salaam Aleikum" em árabe. Será a similitude uma pura coincidência?

QOSHE - ​Abraão perdido - José Miguel Sardica
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​Abraão perdido

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31.10.2023

Em setembro de 2021, no primeiro aniversário da assinatura dos Acordos de Abraão, que normalizaram as relações diplomáticas entre Israel, os Emirados Árabes Unidos e o Bahrein (depois estendidos por Telavive a Marrocos e ao Sudão), estreou nas Nações Unidas um documentário intitulado "Finding Abraham", do argumentista e realizador Malcolm Green, entretanto galardoado com diversos prémios. O documentário tem 30 minutos, está disponível no YouTube e vale (muito) a pena ser visto.

"Finding Abraham" começa com um enunciado motivacional, explicando como, na sequência da assinatura dos Acordos, “um pequeno grupo de jovens de Israel e do golfo Árabe se juntou numa viagem para encontrar a substância por detrás da cerimónia”. Esses jovens ativistas (que partilham o ecrã com vultos como Chemi Peres, o filho de Shimon Peres, o conselheiro para a Paz Dennis Ross, ou o jornalista português Henrique Cymerman),........

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