O dia em que vai ser conhecido o novo líder do PS é uma efeméride curiosa: terão passado exactamente 22 anos desde que o país ficou órfão de António Guterres. Nesse 16 de Dezembro de 2001, o então primeiro-ministro demitiu-se na sequência de um mau resultado eleitoral autárquico, queixando-se de algo que, na altura, poucos perceberam: "o pântano político" que "minaria as relações de confiança entre governantes e governados" e no qual "o país cairia inevitavelmente" caso nada mudasse após as eleições.

Essa noite foi precedida de tempos difíceis, em que o Governo minoritário se viu desgastado por negociações orçamentais complexas, remodelações profundas e "casos e casinhos" como o da criação da polémica Fundação para a Prevenção Rodoviária (que redundou nas demissões do ministro Fernando Gomes e do secretário de Estado Armando Vara). E a curva descendente começara com um acontecimento acidental: a queda de uma ponte em Entre-os-Rios.

O facto de os socialistas terem apenas 115 deputados num Parlamento de 230 significava dificuldades acrescidas, e a mudança de líder do PSD, que passou de um colaborante Marcelo Rebelo de Sousa para um mais combativo Durão Barroso, não ajudava. Mas não seria esse o pântano. Anos mais tarde, numa entrevista ao PÚBLICO, João Cravinho deslindou o enigma: “Só podia ser sobre corrupção que disse o que disse”, explicou o antigo ministro do Equipamento, Planeamento e Administração do Território. “A reacção de Guterres é fundamentalmente uma reacção de fundo moral” contra um "clima pestilento", acrescentou.

Vinte e dois anos depois de Guterres ter pago o seu preço para tentar garantir que a confiança entre governantes e governados seria restabelecida, voltou a sensação de "clima pestilento", e nem uma maioria absoluta conseguiu sobreviver à sucessão de episódios que foram contribuindo para a ingovernabilidade. Os portugueses desconfiam como nunca de quem manda neles, ou de quem quer mandar, e fazem uma avaliação perigosamente semelhante de ambos — basta ouvir os fóruns diários nas rádios e televisões.

Regressarmos ao ponto de partida mais de duas décadas depois — e com um mega processo judicial pelo meio que levou à detenção de um ex-primeiro-ministro — merece reflexão (nos partidos e na sociedade). Até porque, em 2023, os perigos à espreita já não são os mesmos, e a falta de referências morais e políticas pode ter consequências muito mais graves.

QOSHE - O novo líder do PS e o dia do pântano - Sónia Sapage
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O novo líder do PS e o dia do pântano

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09.12.2023

O dia em que vai ser conhecido o novo líder do PS é uma efeméride curiosa: terão passado exactamente 22 anos desde que o país ficou órfão de António Guterres. Nesse 16 de Dezembro de 2001, o então primeiro-ministro demitiu-se na sequência de um mau resultado eleitoral autárquico, queixando-se de algo que, na altura, poucos perceberam: "o pântano político" que "minaria as relações de confiança entre governantes e governados" e no qual "o país cairia inevitavelmente" caso nada mudasse após as eleições.

Essa noite foi precedida de tempos difíceis, em que o Governo minoritário se viu desgastado por........

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