“Boas notícias! Conseguimos! Temos um acordo sobre o Pacto para as Migrações e Asilo [...] com melhor protecção para as nossas fronteiras, mais solidariedade e mais protecção para as pessoas vulneráveis e requerentes de asilo baseados nos nossos valores europeus. Estou tão orgulhosa no dia de hoje.”

A 20 de Dezembro a Comissão Europeia, o Parlamento Europeu e o Conselho da União Europeia chegaram a um acordo histórico quanto ao novo Pacto para as Migrações e Asilo. As palavras citadas acima foram proferidas pela comissária europeia para a Migração e Assuntos Internos, Ylva Johansson, mesmo à saída das negociações, sorrindo para a câmara do seu telemóvel em jeito de selfie. É-me difícil pôr em palavras a revolta que isto me faz sentir. Mas este texto serve para tentar.

O Pacto para as Migrações diz respeito a cinco actos legislativos que têm como objetivo reformar por completo o sistema de migrações e asilo na União Europeia. Mas o que é que se decidiu?

Se o Pacto for aprovado, deixará de se considerar que as pessoas que são levadas para centros de processamento de pedidos de asilo estão em solo europeu. Não tendo oficialmente entrado no país, estarão efectivamente detidas até que seja levado a cabo o seu processo. Esta medida resultará numa expansão sem precedentes da detenção de migrantes, que até ao momento é permitida apenas como último recurso.

O documento prevê a separação dos requerentes de asilo em dois tipos de processos: normal e acelerado, sendo que este último poderá resultar na detenção, seguida de deportação para “países terceiros seguros”, à semelhança do acordo infame entre o Reino Unido e o Ruanda. Alguns eurodeputados lutaram para que houvesse excepções para menores de 12 anos e para famílias, mas sem sucesso. Nem os menores não-acompanhados se verão livres desta ameaça, caso o Estado-membro considere que representam um “risco de segurança”.

Ao longo de todo o processo não haverá praticamente direito a representação legal, e recorrer de uma decisão negativa não terá efeito suspensivo da medida de afastamento. Num toque de inexplicável crueldade, os autores do acordo determinaram que irmãos e irmãs deixarão de ser considerados família, e poderão ser separados à chegada.

Será criada uma enorme base de dados para o armazenamento dos dados biométricos de todos os migrantes que pisam solo europeu, recolhidos no momento da triagem. Várias organizações dos direitos humanos têm-se referido a esta medida como uma violação do direito à protecção de dados e mais um passo para a identificação de migrantes como criminosos. Além disso, este regulamento tem sido amplamente criticado pela sociedade civil por estender os mecanismos de controlo a pessoas que já se encontram no interior dos Estados-membros, normalizando a discriminação racial no interior da sociedade europeia.

O Pacto tem sido vendido como a tão esperada reforma do sistema de Dublin, que atribuía aos Estados fronteiriços uma responsabilidade desproporcional na gestão dos fluxos migratórios. Na verdade, não altera nada de importante. Estes países continuarão a ter de processar a maior parte dos pedidos, e os restantes até verão aumentar o período durante o qual podem deportar migrantes para o país por onde entraram.

Está prevista a criação de um sistema que tem sido apelidado de “solidariedade à la carte”, em que os Estados poderão escolher entre acolher e pagar para fugir às responsabilidades. Esses fundos poderão ser utilizados para financiar a gestão de fronteiras, construir mais muros e mais vedações. Por fim, o documento inclui um regulamento para “situações de crise e de força maior”, referente a situações em que se considere que há um “afluxo excecional de nacionais de países terceiros”, que abre caminho para a suspensão do direito ao asilo à quase total discrição do país de entrada.

No fundo, o Pacto pretende institucionalizar as violações de direitos humanos que ativistas, coletivos e organizações não-governamentais têm continuamente denunciado. O acordo pretende normalizar a detenção de migrantes, em particular, a detenção de menores e de famílias, retirar algumas das já escassas protecções de que estas pessoas ainda gozavam, e pôr em causa o direito de asilo. Não cria passagens seguras nem corredores humanitários, não impede os Estados de criminalizar a ajuda humanitária nem de tratar migrantes como criminosos. É difícil imaginar um retrocesso maior.

Antes da votação final no Parlamento Europeu, este acordo ainda será discutido e votado na Comissão das Liberdades Cívicas, da Justiça e dos Assuntos Internos (LIBE), do qual fazem parte os eurodeputados portugueses Nuno Melo (CDS), Paulo Rangel (PSD), Isabel Santos (PS) e José Gusmão (BE). O primeiro, tanto quanto sei, ainda não se pronunciou. O segundo disse ao Diário de Notícias que considera que este pacote de medidas "equilibra bem as questões de segurança e proteção das fronteiras com o respeito pela dignidade e pelos direitos fundamentais".

Isabel Santos, por seu lado, declarou numa entrevista ao PÚBLICO que não está “nada satisfeita” com o acordo por este se focar demasiado no controlo de fronteiras, mas ainda assim considera-o um passo positivo porque significa que a extrema-direita não conseguiu aquilo que desejava: fechar as fronteiras por completo. José Gusmão disse que, “no fundo, este Pacto dá licença para matar, perseguir, deter e deportar".

Ora, o facto de existir finalmente um acordo não é, por si só, um desenvolvimento positivo. É verdade que estivemos quase uma década à espera de uma resposta concertada da União Europeia aos fluxos migratórios, mas concordarmos todos em piorar significativamente as vidas daqueles que já se encontravam numa situação precária faz-nos pensar se, de facto, valeu a pena chegar a um acordo. O Pacto ficar ligeiramente aquém da perversidade do programa da extrema-direita europeia não constitui, em si, uma vitória. Essa é, na verdade, a fasquia mais baixa que podemos desejar sem lhes “oferecermos a Europa no Natal”. Dito isto, é um absoluto mistério para mim o que Paulo Rangel entende como “respeito pela dignidade e pelos direitos fundamentais”, quando aquilo que está em questão é um acordo que generaliza a detenção de menores, em violação das convenções de direitos das crianças.

É da responsabilidade destes deputados posicionar-se inequivocamente contra este atentado à justiça social.

Vivemos hoje numa Europa em que “solidariedade” significa construir muros e vedações, e em que “protecção para pessoas vulneráveis” significa separar famílias e impedi-las de procurar segurança. Talvez sejam estes os “valores europeus” a que se refere Ylva Johansson. Mas nesse caso talvez eu não queira ser europeu.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

QOSHE - Solidariedade à la carte - Miguel Duarte
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Solidariedade à la carte

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05.01.2024

“Boas notícias! Conseguimos! Temos um acordo sobre o Pacto para as Migrações e Asilo [...] com melhor protecção para as nossas fronteiras, mais solidariedade e mais protecção para as pessoas vulneráveis e requerentes de asilo baseados nos nossos valores europeus. Estou tão orgulhosa no dia de hoje.”

A 20 de Dezembro a Comissão Europeia, o Parlamento Europeu e o Conselho da União Europeia chegaram a um acordo histórico quanto ao novo Pacto para as Migrações e Asilo. As palavras citadas acima foram proferidas pela comissária europeia para a Migração e Assuntos Internos, Ylva Johansson, mesmo à saída das negociações, sorrindo para a câmara do seu telemóvel em jeito de selfie. É-me difícil pôr em palavras a revolta que isto me faz sentir. Mas este texto serve para tentar.

O Pacto para as Migrações diz respeito a cinco actos legislativos que têm como objetivo reformar por completo o sistema de migrações e asilo na União Europeia. Mas o que é que se decidiu?

Se o Pacto for aprovado, deixará de se considerar que as pessoas que são levadas para centros de processamento de pedidos de asilo estão em solo europeu. Não tendo oficialmente entrado no país, estarão efectivamente detidas até que seja levado a cabo o seu processo. Esta medida resultará numa expansão sem precedentes da detenção de migrantes, que até ao momento é permitida apenas como último recurso.

O documento prevê a separação dos requerentes de asilo em dois tipos de processos: normal e acelerado, sendo que este último poderá resultar na detenção, seguida de deportação para “países terceiros seguros”, à semelhança do acordo infame entre o Reino Unido e o Ruanda. Alguns eurodeputados lutaram........

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