Já estava mais ou menos anunciada a morte da ciência fundamental em Portugal – e com ela, a manter-se este rumo futuramente, o necessário definhar de toda a ciência (aplicada ou fundamental).

Em concursos e discursos anteriores antevia-se uma visão cada vez mais economicista e imediatista dos apoios à ciência em Portugal: nos painéis dos concursos, nos projetos aceites, nas condições de elegibilidade. Mas este janeiro, a senhora ministra da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior e a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) trataram de finalizar esse desígnio: a FCT abriu o seu concurso de projetos de investigação científica e desenvolvimento tecnológico em todos os domínios científicos, exceto que, afinal, esse concurso não é para todos os domínios.

Como claramente descrito nos documentos de apoio, a (quase) totalidade dos projetos a ser financiados terá de ser exclusivamente em domínios aplicados – ou seja, só a ciência imediatamente aplicável é financiada, e toda a ciência fundamental é praticamente excluída deste instrumento de apoio (não havendo outros instrumentos de financiamento do mesmo valor). Só uma ínfima quantia da totalidade dos 120 milhões de euros disponíveis poderá ser usada para apoiar projetos que não sejam imediatamente aplicáveis (e nem esta se destina exclusivamente a estes tipo e ciência).

Por um lado, percebo que politicamente, e que na visão da sociedade em geral, seja mais fácil, apesar que meramente populista, defender e compreender o esmagar da ciência fundamental em detrimento de uma ciência que traga valor imediato (é mais fácil compreender o investimento num projeto que atua diretamente em pacientes com doença de Alzheimer do que um projeto que tenta explicar como é que o nosso cérebro nos permite reter informação em memória – mesmo que este último, mais tarde, seja essencial precisamente para compreender e atuar sobre a doença de Alzheimer).

Por outro lado, já não é minimamente compreensível nem aceitável que as pessoas que tutelam a ciência em Portugal – à cabeça a senhora ministra, mas também os conselhos diretivos da FCT – pessoas que são investigadoras de nomeada, se revejam numa decisão destas. Na verdade, a senhora ministra é uma investigadora de topo mundial, tendo sido apoiada, por exemplo, pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC, na sigla em Inglês).

Não deixa de ser interessante que o ERC – sem qualquer dúvida o financiador de ciência mais importante e prestigiado na Europa – seja um defensor acérrimo da importância da ciência fundamental, daquela ciência que aparentemente (e na verdade só aparentemente) não tem uma aplicação e aponta exclusivamente à curiosidade e compreensão dos problemas científicos centrais.

Não deixa de ser revelador também que o ERC tenha recentemente proposto duplicar o seu orçamento para a ciência fundamental. E o que fazemos nós em Portugal? Em vez de seguirmos as boas práticas do ERC, lançamo-nos exatamente na direção contrária. Isto apesar de num encontro de Ciência e Inovação em 2022 em Coimbra, o então candidato a primeiro-ministro, na presença da futura ministra, tenha referido que a FCT iria apoiar tanto a ciência aplicada como a fundamental – ficou-se nas intenções.

É importante que fique claro para os decisores políticos e sociedade em geral (para os cientistas já deveria ser, mas…), que esta tendência para o “já e o agora” e para a valorização economicista e imediatista da ciência tem consequências gravíssimas, mesmo para a capacidade de fornecer soluções imediatas. Ou seja, o assumir-se que a ciência deve ser só (ou maioritariamente) aplicada, e não uma distribuição equilibrada entre as duas, irá destruir a própria capacidade da ciência aplicada de resolver as questões a que se propõe.

Lembremo-nos do modo supersónico como as vacinas da covid foram criadas para resolver um dos maiores desafios societais de sempre da espécie humana. Sem o apoio duradouro e contínuo à ciência fundamental nos estudos mRNA, tal não seria minimamente possível.

Muitos outros exemplos existem de projetos em todas as áreas científicas, projetos que claramente não são aplicados, que demoram o seu tempo, que não aparentam ser importantes para a sociedade, mas que anos depois são centrais no desenvolvimento da ciência aplicada necessária para melhorar a nossa qualidade de vida.

A questão que fica para a FCT, para a senhora ministra e para os decisores políticos é: que projetos de ciência fundamental sem nenhuma aplicação aparente e imediata, de excelência científica (pelo menos tão boa como os de ciência aplicada) serão hoje negados nos concursos de investigação científica e desenvolvimento tecnológico em todos os domínios científicos 2023, que seriam a base das respostas aos grandes desafios societais vindouros?

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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O Ministério da Ciência está a matar a ciência fundamental

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21.02.2024

Já estava mais ou menos anunciada a morte da ciência fundamental em Portugal – e com ela, a manter-se este rumo futuramente, o necessário definhar de toda a ciência (aplicada ou fundamental).

Em concursos e discursos anteriores antevia-se uma visão cada vez mais economicista e imediatista dos apoios à ciência em Portugal: nos painéis dos concursos, nos projetos aceites, nas condições de elegibilidade. Mas este janeiro, a senhora ministra da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior e a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) trataram de finalizar esse desígnio: a FCT abriu o seu concurso de projetos de investigação científica e desenvolvimento tecnológico em todos os domínios científicos, exceto que, afinal, esse concurso não é para todos os domínios.

Como claramente descrito nos documentos de apoio, a (quase) totalidade dos projetos a ser financiados terá de ser exclusivamente em domínios aplicados – ou seja, só a ciência imediatamente aplicável é financiada, e toda a ciência fundamental é praticamente excluída deste instrumento de apoio (não havendo outros instrumentos de financiamento do mesmo valor). Só uma ínfima quantia da totalidade dos 120 milhões de euros disponíveis poderá ser........

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