Entrámos em recessão. A situação preocupa. Não há soluções. A cada dia, o mesmo problema: temos cada vez menos bons amigos, ou, pior, julgamos ter cada vez menos bons amigos. Pior — porque pode ser que não andemos a valorizar os bons amigos que temos. É a "friendship recession", conceito introduzido por Daniel Cox, em 2021, e explorado por tantos outros académicos e investigadores, que viram na pandemia e nas consequências por ela provocadas um acelerador da deterioração da vida social dos amigos.

Como a maioria das grandes crises mundiais, esta também nasceu nos Estados Unidos da América. A recessão afeta mais os homens do que as mulheres, mas faz pouco sentido individualizar um ponto que compromete seriamente os mercados, mesmo que homens e mulheres se comportem de forma distinta perante esta crise. Sem surpresa, as mulheres lidam melhor com a questão — abrem-se mais e fecham-se menos, e dão-se mais umas às outras, enquanto os homens, que se revêem em lobos imponentes, mas solitários, permanecem encostados a árvores que suportam o vazio da noite: sentem muito, mas também dizem muito pouco. Também não surpreende.

Para Aristóteles, a amizade correspondia à relação ideal, já que estabelece uma igualdade genuína e radical entre os amigos. Tal como uma reconhecida marca de cerveja nacional, o filósofo levava a amizade a sério, reconhecendo que, em princípio, uma pessoa inicia uma amizade sem ter em vista um futuro proveito próprio. Tornamo-nos amigos uns dos outros porque sim. Porque não o conseguimos evitar. Damo-nos à relação e, dos outros, não esperamos nada em troca, já que o apoio e a compreensão estão garantidos à partida.

Num mundo digitalizado que está constantemente à procura de novas automatizações, temos pouco espaço para os amigos. E tempo. Temos tendência para culpar as redes sociais, mas sabemos bem que não são a origem exclusiva da questão, até porque podem formar elos entre pessoas, criando novas amizades ou recuperando outras. Mentes mais criativas põem as culpas no sistema capitalista, apontando para a crescente monetização da nossa existência. É um flex, mas compreende-se: ter amigos sai caro. É verdade que podemos, simplesmente, conversar no meio da rua, mas preferimos sempre o conforto dos bares, dos cafés e dos restaurantes. O conforto custa, mas vale a pena. Talvez façam falta mais third places: os sítios que separam as casas dos trabalhos, dividindo rotinas mecânicas e predefinidas, e permitindo o contacto humano.

Perverso: os amigos pagam para conviver uns com os outros. Tudo tem um custo: quando não gastamos dinheiro, gastamos tempo. Em muitas situações, o tempo vale muito mais do que o dinheiro. Sabemos bem com quem queremos gastar o nosso tempo, e valorizamos os que escolhem estar connosco, porque constituímos uma decisão — não deixa de ser impressionante reflectir sobre o facto de algumas pessoas, insubstituíveis e maravilhosas, escolherem gastar parte do seu tempo connosco, sobretudo agora que essas pessoas formam um número cada vez menor.

Se ao menos pudéssemos contar com um Banco Central da Amizade (BCA) que a fosse regularizando, nivelando as taxas de juras, por exemplo. É que os amigos vivem para as juras. As melhores histórias, as que surpreendem, terminam sempre com um "jura". Eles juram, e nós, bem ou mal, lá vamos acreditando e rindo. E, pelo caminho, vamos devendo, porque é isso que os amigos fazem: devem. Devemos muito uns aos outros. E é suposto que assim seja. Endividamo-nos apenas porque, mais tarde, queremos pagar a dívida. Ficamos a dever cafés, cigarros, cervejas e conversas. E ainda bem.

No entanto, não devemos ignorar as evidências. Estamos em crise. Os indicadores não são positivos. Fica-se com a ideia de que, a cada dia, os amigos passam por novas dificuldades. Amadurecem, crescendo, e apercebem-se de que não têm o mesmo tempo para tudo. Para os amigos. Para o amor. Para os copos. Para o desporto. Para a família. Para a preguiça. Para a vida. Mas, acima de tudo, para os amigos. E chegam à conclusão de que também não têm assim tantos amigos. Talvez seja o suposto. Ser-se amigo é difícil, porque obriga a várias gestões. Mas compensa. Os amigos vão ultrapassar esta crise — nem que precisem de resgatar os amigos de sempre e os outros que apareçam. Ou de serem eles próprios os resgatados.

QOSHE - Amizade em recessão - João Salazar Braga
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Amizade em recessão

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06.04.2024

Entrámos em recessão. A situação preocupa. Não há soluções. A cada dia, o mesmo problema: temos cada vez menos bons amigos, ou, pior, julgamos ter cada vez menos bons amigos. Pior — porque pode ser que não andemos a valorizar os bons amigos que temos. É a "friendship recession", conceito introduzido por Daniel Cox, em 2021, e explorado por tantos outros académicos e investigadores, que viram na pandemia e nas consequências por ela provocadas um acelerador da deterioração da vida social dos amigos.

Como a maioria das grandes crises mundiais, esta também nasceu nos Estados Unidos da América. A recessão afeta mais os homens do que as mulheres, mas faz pouco sentido individualizar um ponto que compromete seriamente os mercados, mesmo que homens e mulheres se comportem de forma distinta perante esta crise. Sem surpresa, as mulheres lidam melhor com a questão — abrem-se mais e fecham-se menos, e dão-se mais umas às outras, enquanto os homens, que se revêem em lobos imponentes, mas solitários, permanecem encostados a árvores que suportam o vazio da noite: sentem........

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