1. Da entrada do Palácio dos Primatas (Primaciálny Palác, no original, em eslovaco), em Bratislava, é possível observar o pátio central, onde São Jorge ataca, com uma lança, um dragão de três cabeças. Detalhe interessante na estrutura é a água jorrar da boca dos dragões para a piscina da fonte. “Mortos os dragões, acaba-se a água?”, questionei.

A pergunta, que a alguns poderá parecer disparatada, colou-me ao chão. E foi precisamente para aí que dirigi o olhar à procura de solução para o enigma. Todavia, a meio caminho, os olhos esbarraram no cartaz que destacava um caracol em arame com uma concha de madeira às costas. Título: “Kombinácia”, sendo o “o” representado por um rolo de arame dourado. Ainda tentei regressar ao enigma dos dragões de São Jorge, mas a seta aos pés do cartaz dirigiu definitivamente a minha atenção para uma porta entreaberta a meia dúzia de passos de distância.

Entrei. Recebeu-me uma senhora com um sorriso lindo. Sorri-lhe de volta.

— Olá! O que temos aqui? — perguntei.

— Obras de arte em arame realizadas por vários artistas — explicou a senhora, entre algumas (poucas) palavras em inglês e muitos gestos.

— Posso ver? — indaguei.

A senhora anuiu e encaminhou-me para uma mesa. Um panfleto em inglês indicava a gratuitidade da visita e pedia um donativo a quem quisesse tirar fotografias. Ao lado, três folhas: duas com a lista das obras numeradas, título e autoria, e outra que convidava os visitantes a votarem na sua preferida.

Antes de iniciar a visita, apresentei-me como deve ser e perguntei-lhe o nome.

— Rozália Ďurčatová.

— A minha irmã chama-se Rosária! — exclamei, como se fosse o correspondente em português. (Esqueci-me de Rosália)

Abriu um sorriso ainda maior e deitou as mãos ao peito. Tentou falar em inglês, mas as palavras saíam-lhe em eslovaco. Por fim, em silêncio, dirigiu as mãos para mim como se me entregasse alguma coisa que tirava do peito:

— Rosária — disse.

Um abraço para a minha irmã.

O momento foi de uma simplicidade e, ao mesmo tempo, de uma humanidade tão grande que me emocionou. Peguei-lhe nas mãos e recebi o abraço que enviava para uma desconhecida a milhares de quilómetros de distância. A humanidade não depende do conhecimento ou da distância. E muito menos da língua.

Comunicação silenciosa, de coração para coração.

2. Há dias, liguei para o Departamento de Comunicação da câmara municipal de uma grande cidade portuguesa. Atendeu-me uma senhora. Apresentei-me e expliquei detalhadamente um projecto de uma associação sem fins lucrativos. Nota: não liguei a pedir dinheiro, apenas ajuda, orientação e encaminhamento. Ao fim de cinco minutos de explicação, perguntei o que achava.

— Eu não percebi muito bem, vou passar para um colega aqui da comunicação — respondeu-me.

O colega atendeu. Repeti tudo. Ainda mais devagar e com o cuidado de melhorar o meu discurso, visto não ter conseguido passar a mensagem da primeira vez. Finalizada a explicação, perguntei se achava que o departamento me podia ajudar e, eventualmente, fazer sugestões.

— Aqui não sugerimos nada. Envie um email.

Como a Rozália, bloqueei. Mas na minha própria língua.

— Combinado. Dê-me o endereço, por favor — consegui verbalizar.

O senhor ditou o endereço.

— Pronto, até à próxima! — finalizou.

— Desculpe, envio ao cuidado de quem? Não me chegou a dizer o seu nome… — insisti.

— Olhe, envie para o geral e depois logo se vê.

Departamento de Comunicação. A mesma língua. Falha de comunicação.

3. Depois de examinar as 63 obras expostas no Palácio dos Primatas, votei na Anne, uma silhueta de um ser humano em arame de aço inoxidável de cor preta e fios têxteis. A peça recorda-me a universalidade da humanidade e a nossa umbilical igualdade, sem distinção de géneros, credos ou do que quer que seja, e a possibilidade de comunicação além das barreiras linguísticas. Aceito outras interpretações, mas eu é assim que vejo Anne. Nota-se muito que conheço a autora?

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Postal de Bratislava: dragões, arame e humanidade

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09.11.2023

1. Da entrada do Palácio dos Primatas (Primaciálny Palác, no original, em eslovaco), em Bratislava, é possível observar o pátio central, onde São Jorge ataca, com uma lança, um dragão de três cabeças. Detalhe interessante na estrutura é a água jorrar da boca dos dragões para a piscina da fonte. “Mortos os dragões, acaba-se a água?”, questionei.

A pergunta, que a alguns poderá parecer disparatada, colou-me ao chão. E foi precisamente para aí que dirigi o olhar à procura de solução para o enigma. Todavia, a meio caminho, os olhos esbarraram no cartaz que destacava um caracol em arame com uma concha de madeira às costas. Título: “Kombinácia”, sendo o “o” representado por um rolo de arame dourado. Ainda tentei regressar ao enigma dos dragões de São Jorge, mas a seta aos pés do cartaz dirigiu definitivamente a minha atenção para uma porta entreaberta a meia dúzia de passos de distância.

Entrei. Recebeu-me uma senhora com um sorriso lindo. Sorri-lhe de volta.

— Olá! O que temos aqui? —........

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